1.Este
texto pode servir para anunciar outros com rumores do
passado e do futuro, a partir do nosso presente. Ainda há
quem se lembre do longo conflito entre as decisões do
Vaticano, dos anos oitenta do século passado, e certas
correntes do pensamento social do mundo católico, de modo
particular as situadas no âmbito da Teologia da Libertação.
Esta era acusada de se ter deixado influenciar pelo
marxismo, quer de marca soviética, castrista ou libertária e
que viu a sua ruína na queda do Muro de Berlim e no
desmantelamento do império comunista.
Pensava-se que a Igreja iria abandonar definitivamente a
questão social e centrar-se na sacristia e seus anexos.
Entretanto, os movimentos “espiritualistas” passaram a ser
acusados de revelarem mais sede de poder na Igreja e na
sociedade do que paixão pelo espírito de Cristo. Por seu
lado, a instituição eclesiástica perdeu, pelo abandono e
pela idade, muitos padres e os poucos novos, que vão
chegando – dada a descontinuidade de gerações –, parece que
não conseguem perceber a significação do Vaticano II, para a
missão da Igreja, no mundo contemporâneo.
É preciso cuidado com todos os esquemas simplistas. Há, no
entanto, apesar de todas as ambiguidades, um conjunto de
sinais que mostram que algum equilíbrio de tendências se
começa a esboçar.
2.
O Papa já assinou uma nova encíclica,
Caritas in Veritate,
fazendo a ponte entre a encíclica
Populorum Progressio
(1967), de Paulo VI, e os desafios que temos diante de nós.
As Jornadas Pastorais do nosso Episcopado acabam de
desenhar, para os católicos portugueses, uma nova pedagogia
social, compreendendo que são os pobres o verdadeiro “altar”
de Deus. Já está publicado o documento da Comissão Teológica
Internacional, resultado de uma investigação preocupada com
uma ética universal e apresentada como “um novo olhar sobre
a lei natural”, tendo em conta todas as contribuições do
passado e do presente. Está anunciada, para Novembro, a
“Carta da Compaixão”, preparada desde 2008. Destina-se a
congregar todos aqueles, religiosos ou não, que não suportam
a situação actual do mundo da exclusão, atentos à antiga
“regra de ouro” na sua formulação negativa e positiva: não
fazer aos outros o que não desejamos que nos façam a nós e
fazer-lhes aquilo que gostaríamos que nos fizessem.
São bons sinais, embora a situação seja complexa. A pastoral
da Igreja já compreendeu que não pode preocupar-se, apenas,
com a aliança da cultura e da fé no campo da diversidade das
expressões filosóficas e artísticas. As tecnociências, que
estão a modificar a imagem que o ser humano tinha da sua
própria natureza, da sua origem, das suas relações
inter-pessoais, inter-povos e com os outros seres vivos ou
não, levantam novas questões à inteligência da fé e exigem
um confronto entre diversas concepções éticas. Mediante o
controlo da reprodução humana, do comportamento psíquico e
das doenças, as tecnociências marcam já alguns aspectos da
cultura do futuro. É preciso, para isso, que haja futuro.
3.
Todos estes sinais fazem apelo a exigências éticas, sabendo
que o capitalismo é amoral. Como lembra o filósofo A.
Comte-Sponville, o capitalismo não funciona pela virtude,
pela generosidade, pelo desinteresse, mas no interesse
pessoal ou familiar: funciona por egoísmo. Por isso, é ele
tão forte, pois nunca falta egoísmo. O mercado é incapaz de
se auto-regular de modo socialmente aceitável. E a moral não
basta. Entre o poder cego da economia e a fraqueza da moral,
só resta a política e o direito para fixar os limites do que
não é negociável, para que os valores morais dos indivíduos
controlem, em parte, a realidade amoral da economia.
Hoje, a questão situa-se entre a escala mundial dos
problemas económicos e a escala nacional dos nossos meios de
acção. Este desfasamento entrega a política nacional à sua
impotência. Como não se pode abolir a mundialização dos
problemas, para limitar os efeitos perversos do capitalismo,
é necessária uma política mundial que supõe um compromisso
entre Estados: “quanto mais lúcido se for acerca da força da
economia e da fraqueza da moral, mais exigente se deve ser
sobre o direito e a política” (1).
Jacques Attali nota que o crescimento da economia criminosa
pode vir a dominar a economia real. A Somália é, hoje, uma
economia de mercado sem Estado, a economia das máfias e da
traficância. Tendo isto em conta, as crises até podem ser
proveitosas, se provocarem a tomada de consciência dos
perigos que nos espreitam em relação às gerações presentes e
às gerações futuras das quais só nós podemos ser a voz. Se
não se actuar depressa, a selvajaria absoluta arrebentará
com tudo; mas tudo pode ser salvo se houver consciência da
importância de um Estado de direito global que actue no
interesse de todos.
Há quem diga que, por razões económicas (o crescimento) e
por razões morais (o desenvolvimento), caminhamos para uma
catástrofe ecológica. Se, porém, acolhermos o alarme desta
crise, poderemos converter os nossos estilos de vida e dar
bons sinais de que juntos podemos enfrentar o futuro que
exige uma política global.