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Frei Bento
Domingues, o.p.
Alçada
Baptista
e o catolicismo português
1.Quando se fala dos católicos
- leigos ou padres - dos anos 40 a 74 do século passado, é quase
só, e sempre, para saber o lugar que ocuparam na oposição ao
Estado Novo, com o pressuposto de que a "Igreja" era um dos seus
pilares. Alçada Baptista figura, necessariamente, nessa
paisagem, não só devido às suas tomadas de posição individuais e
de grupo, mas sobretudo por causa de um empreendimento de
vanguarda e sem paralelo, nos anos 60, "A Aventura da Moraes",
que se exprimiu através de uma livraria-editora e duas revistas:
O Tempo e o Modo e Concilium (1). |
Sobre as peripécias e repercussões
desta aventura, já se escreveu muito e continuar-se-á,
certamente, a escrever pela sua novidade e significação no campo
cultural, religioso e político. O próprio António Alçada
explicou, muitas vezes, a nascente desse sonho e as sucessivas
dificuldades, incompreensões e desencantos na sua realização,
sem nunca renegar a "iluminação" que o fez abandonar a banca
prometedora de advogado e tornar-se um editor improvisado:
"Naquela altura eu acreditava na Igreja como os crentes
acreditam nas igrejas. A insatisfação religiosa que, algum tempo
depois, iria desaguar no Concílio Vaticano II era um meio que
exprimia as minhas ansiedades e achava que elas eram partilhadas
por uma maioria de crentes que estavam inteiramente desmunidos
de elementos que os ajudassem a consciencializar e a estruturar
aquilo que, na linguagem que então me era cara, 'contribuísse
para a progressiva libertação do homem através do esclarecimento
e da denúncia da sua alienação política, cultural e religiosa'."
2. Alçada procurava, portanto, responder a uma grande lacuna do
catolicismo português e agregar pessoas que a sentissem e a
desejassem preencher. Não se reconhecia no mundo mental,
espiritual e militante da Acção Católica e a criação de um
partido, à imagem da ala mais autêntica da democracia cristã
italiana, tornara-se inviável. Do Vaticano II ainda não se
falava. Passados anos, quando se poderia pensar que tinha a
solução na mão, deu-se conta que andava só a substituir umas
coisas exteriores por outras que o impediam de ser ele mesmo.
Nem tudo foi um desastre: "Uma das maiores compensações da minha
'irresponsabilidade' de me ter posto a ver se salvava o mundo
foi, muito possivelmente, a de ter criado um estatuto que me
deixou com um pé no sistema sem que ele se tivesse apropriado
completamente de mim." Foi também essa profissão de editor e as
andanças em que se viu metido que lhe permitiram um conhecimento
do mundo e das pessoas que, como diz em A Pesca à Linha, de
outro modo, lhe teriam passado ao lado. Acerca desses encontros,
leituras e descobertas, confessa: "Trago sempre comigo um pouco
de razão e ironia que me trava os encantamentos sem me retirar
completamente do clima onde estou." No primeiro encontro com
Lanza del Vasto, depara, em estado puro, com o prazer de viver,
de olhar, de ver, de respirar, de ouvir, de estar com os outros,
com a alegria. Era a coincidência entre pensamento e vida, mas
para Alçada, o incorrigível anti-herói, na primeira reacção,
pareceu-lhe que Lanza del Vasto, vestido de profeta, se levava
demasiado a sério.
3.Para surpresa de quem o conhecia mal, Alçada aparece, em 1971,
com a sua Peregrinação Interior. Vol. I: Reflexões sobre Deus.
Serviu a Eduardo Lourenço, num texto magistral, para dilatar e
aprofundar essa peregrinação, no interior da nossa literatura,
da nossa religiosidade e do nosso catolicismo (2).
Vê, na Peregrinação Interior, o
mais significativo e brilhante espelho de uma nova maneira de
"ser católico", não isenta de dilemática inquietude, embora
muito lusitanamente alheia à cegueira divina de Abraão e aos
paradoxos de Job, o que marca, se não os limites clássicos da
nossa religiosidade, ao menos os da visão dela de António Alçada
Baptista: um catolicismo reformado e reformista, confiado e
inquieto.
Dessa Peregrinação surgiu um
segundo volume (1982) e, aventuro-me a dizer, um terceiro com
outro título, O Tecido do Outono (1999), elaborando, através de
novos laços, uma peregrinação expressa numa singular teologia
narrativa, onde imanência e transcendência se exigem mutuamente:
"Diria que há coisas na natureza e na condição humana que me
impõem a existência de um núcleo misterioso a que chamo Deus.
[...] Estamos no tempo da morte de Deus, da sua ausência
infinita, e aguardamos a sua Ressurreição. É evidente que não
posso estar interessado num deus que aterrorizou toda a minha
vida passada, que me cortou cruelmente de uma perspectiva de
desenvolvimento humano que tem que ser vivido na terra e de que
procura separar-me: dos prazeres, dos valores que a terra me
proporciona, quer na minha comunicação com os outros, quer no
meu desenvolvimento pessoal como o amor humano e a alegria.
Recuso uma concepção de Deus cujo caminho seja a tristeza e a
angústia."
Alçada, na sua peregrinação,
perdeu-se de uma Igreja que sabe tudo e de um Deus autoritário.
Encontrou em Cristo a humanidade de Deus, a fonte da possível
humanização divina da Igreja. |