O espírito do cristianismo


 

BENTO DOMINGUES, O.P. .......................Público, Lisboa, 10.05.2008

     1. O conhecido aforismo de Marcel Gauchet – "o cristianismo é a religião da saída da religião" – provocou, paradoxalmente, um outro: "o cristianismo é a religião do futuro da religião", cujo sentido é explicitado por Jean-Paul Willaime (1).

     Nas análises sociológicas, acerca da evolução do cristianismo, este sociólogo distingue, de forma esquemática, três momentos que não são estritamente cronológicos. Um primeiro momento é marcado pelo choque entre religião e modernidade e, empiricamente, alimentado pelo conflito entre o catolicismo intransigente e os ideais do mundo moderno. Foi dominado por um paradigma interpretativo da secularização: quanta mais modernidade, menos religião e menos cristianismo. Numa modernidade em expansão, como poder racionalizador e dessacralizante, o futuro do cristianismo parecia ameaçado.

     Num segundo momento, o interesse pela sociologia de Max Weber e de Ernst Troelstch – caracterizada pela atenção às génesis religiosas da modernidade ocidental – descobria que esta modernidade desmitificadora tinha algumas das suas raízes no judaísmo e no cristianismo, sobretudo nas suas expressões protestantes.

     Num terceiro momento, aberto com o debate internacional sobre a pós-modernidade, o cristianismo já não aparece como anti-moderno ou pré-moderno, mas como ultra-moderno, no sentido que J.-P. Willaime dará a este termo. Ao ser a religião da saída da religião, o cristianismo torna-se a religião do futuro da religião. Integra na sua auto-compreensão não só o carácter laico e pluralista da sociedade, mas também o princípio fundamental da liberdade do indivíduo e da sua autonomia. Neste terceiro momento, o cristianismo é uma oferta de sentido, aponta para Deus e para o próximo, tem exigências éticas, mas sem impor normas. Inscreve-se numa sociedade de debate que procura ajustar constantemente as suas normas às evoluções da vida.

     2. Este sociólogo não se demora nas estatísticas nem se preocupa com as notícias derrotistas dos meios de comunicação. Não ignora o enfraquecimento social do cristianismo, em França e na Europa, atestado pela diminuição do número de pessoas que se identificam como cristãs e pela baixa da prática cultual. Hoje, num país como a França, menos de metade dos jovens foram formados no cristianismo e, portanto, mais de 50 por cento dos jovens já não o foi. Esta é uma configuração inédita da qual ainda não se podem medir todas as consequências. Estes jovens, porém, não se reclamam do ateísmo. Situam-se num indiferentismo e num probabilismo, mas a partir da experiência individual, abrem-se a formas alternativas de religiosidade, a algo espiritual, embora não forçosamente cristão. Isto significa que as Igrejas cristãs perderam poder sobre os indivíduos e a sociedade. No entanto, como observa Jean Delumeau, não se trata do fim do cristianismo, mas do fim do cristianismo como poder.

     Esta perda de poder corresponde a uma "saída da religião", se for entendida como "saída de um mundo onde a religião era estruturante, onde comandava a forma política das sociedades e no qual definia as regras do laço social". Isto não é o fim do cristianismo, antes pelo contrário. O próprio cristianismo não é estranho a este fim do religioso como poder englobante e estruturante. Integra, cada vez mais, na sua auto compreensão, a saída desse tipo de religião, como mostrou Marcel Gauchet. É a esta luz que Willaime defende a seguinte tese paradoxal: "é precisamente porque o cristianismo é a religião da saída da religião que pode incarnar, hoje, uma das figuras possíveis do futuro da religião".

     A guerra de duas Franças – católica e laica – e o choque frontal que se produziu nesse país, entre o catolicismo intransigente e a modernidade secularizadora, não devem ocultar a genealogia judaico-cristã da modernidade ocidental. O cristianismo contribuiu, de forma decisiva, para a emergência desta modernidade. A incarnação confirma, efectivamente, tanto a dignidade do mundo como a sua diferença com Deus.

     3. O famoso aforismo, dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus (Mt 22, 21) e a declaração de Jesus, diante de Pilatos, o meu Reino não é deste mundo (Jo 18, 36), pertencem às origens do cristianismo. É o princípio da separação do poder político e das instituições religiosas. Apesar de todas as interferências e confusões político-religiosas, no regime de Cristandade, este princípio criou, desde o começo, uma tensão propícia à eclosão do Estado moderno emancipado de toda a tutela religiosa.

     Seria um exagero circunscrever o espírito do cristianismo – o Espírito plural do Pentecostes – às expressões do seu devir ocidental. Foram e são muitas expressões do cristianismo. O devir das sociedades, das religiões e do cristianismo não está limitado pelas nossas previsões. O cristianismo tem a missão de ajudar a descobrir, a revelar o segredo e a graça da transformação da vida em novas criações de fraternidade. Deixemos o Espírito Santo à solta, tanto nas Igrejas como nas sociedades.

 
(1) Jean-Paul Willaime, Le christianisme: une religion de l'avenir de la religion?, in René Rémond (dir.), Les grandes inventions du christianisme, Paris, Bayard, 1999.