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BENTO DOMINGUES, O.P. .......................Público, Lisboa, .2008 | |
Agora, fala-se, debate-se e escreve-se abundantemente sobre a crise, assegurando uns que o pior já passou e outros que o pior está para vir. Continuam, no entanto, por explicar, de forma adequada, as causas reais que cegaram tantos economistas, gestores, conselheiros e reguladores – muito bem pagos e premiados, servidos pela melhor tecnologia – a ponto de não conseguirem ver o desastre que estavam a provocar. Repetiu-se, até à saciedade, que era preciso menos Estado e mais iniciativa privada, pois ele só servia para complicar e empatar. Seja como for, o Estado acaba de receber a maior consagração que se poderia imaginar e a economia de mercado, na sua expressão neo-liberal, perdeu a aura fictícia da sua auto-regulação. 2. Começou, em Roma, no passado dia 5, a XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos da Igreja católica. Terminará no próximo dia 26. É cedo para comentar este acontecimento. Dir-se-á que o Sínodo dos Bispos não goza de grande prestígio. A colegialidade episcopal, uma redescoberta do Vaticano II, voltou a ser tão invisível como antes. No entanto, o tema – A Palavra de Deus na vida e missão da Igreja – é primordial. Veremos se o compacto Instrumentum laboris (“Instrumento de trabalho”) será, de facto, operacional para que a Igreja redescubra a verdadeira natureza da evangelização do mundo contemporâneo, pois é, a partir desta, que ela pode renascer e reencontrar a sua juventude. Os textos da Bíblia são interpretados, pelos crentes, como testemunhos escritos, cheios de meandros, da revelação divina. Para os cristãos, a palavra humana de Deus é Jesus Cristo. Como diz Eduardo Lourenço, «Cristo é o momento (sem limite de tempo) em que a humanidade tomou forma humana. (…) Foi crucificado, não por querer ser deus, mas por nos ensinar o que era ser homem. Dois mil anos passaram sem que esquecêssemos nem aprendêssemos a lição. (…) No Ocidente não se levantou outro modelo cultural (e, mais além do cultural, um modelo existencial) mais profundo e mais radical do que o modelo de Cristo» (1). 3. Na perspectiva da liturgia deste Domingo, a Igreja existe, precisamente, para testemunhar, na opacidade da história, que os seres humanos, todos os seres humanos, estão, desde sempre e para sempre, convidados por Deus para um grande banquete. Tanta generosidade, mesmo no estilo enigmático das parábolas, sabe um pouco a publicidade enganosa. Num mundo de feira das religiões, de novos movimentos religiosos, de religião à la carte, de consumo de espiritualidades intimistas, o convite da liturgia de hoje, ou surge como pouco adequado a esses consumos individualistas, ou como um sonho inconsistente. Quem poderá tomar a sério, mesmo numa perspectiva escatológica, o belo sonho de Isaías? «No monte Sião, o Senhor do universo prepara para todos os povos um banquete de carnes gordas, acompanhadas de vinhos velhos, carnes gordas e saborosas, vinhos velhos e bem tratados. Neste monte, Ele arrancará o véu de luto que cobre todos os povos, o pano que encobre todas as nações. Aniquilará a morte para sempre, enxugará as lágrimas de todas as faces e eliminará o opróbrio que pesa sobre o seu povo, sobre toda a nação. Foi o Senhor quem o proclamou. Dir-se-á naquele dia: “Este é o nosso Deus, nele confiámos e Ele nos salva. Este é o Senhor em quem confiámos. Congratulemo-nos e rejubilemos com a sua salvação. A mão do Senhor repousará sobre este monte”» (Is 25, 6-10). Podia ser o sonho de toda a humanidade. De facto, o seu horizonte não vai além do regresso dos exilados de Israel – o “povo de Deus” – ao monte Sião, a Jerusalém. Não ultrapassa as fronteiras do nacionalismo. A leitura cristã do Antigo Testamento vê nele o prenúncio do universalismo aberto por Jesus e incarnado a partir da intervenção de S. Paulo. Note-se, porém, que este universalismo irrestrito vai de encontro a uma das grandes orientações da religião de Israel centrada na criação e na aliança de Noé, uma aliança cósmica. No Evangelho de S. Mateus, da Missa de hoje, acerca da controvérsia entre os que aceitaram o messianismo de Jesus e aqueles que o recusavam, a metáfora do banquete revela-se extremamente sugestiva (Mt 22, 1-14). Não é um texto anti-semita. Esquecemos que não só Jesus, mas também os autores dos Evangelhos e dos Actos e todos os seus primeiros seguidores, eram judeus. Se controvérsias há, e algumas são radicais, são desavenças de família. No entanto, quer para os que aceitam o messianismo de Jesus quer para aqueles que o recusam, o «mundo parece continuar tão cruel, corrupto e caótico como antes». Mas, se desistirmos de sonhar e trabalhar por um mundo em que não haja uns à mesa e outros à porta, é porque celebramos a Eucaristia em vão.
(1) Cf. “Opção” nº 97 (Março 1978) e “Reflexão Cristã” nº 42 (Dez.84 / Jan. 85) |
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