Populares e impopulares

 

1. Estamos em tempo de santos populares: “primeiro vem Santo António, depois S. João e, por fim, vem S. Pedro para a reinação”. Santo António, pronto-socorro em todos os apertos, merece o primeiro lugar. É o português mais universal e nem se importa que lhe atribuam várias nacionalidades. Estranho é S. João Baptista: vida dura, pregação severa, cabeça servida num prato e, no entanto, põe o país – sobretudo Braga e Porto – de cabeça perdida. Mais espantoso ainda é S. Pedro. Fixaram-lhe, nos Evangelhos, uma imagem de homem rude e precipitado; generoso, mas de vistas curtas; pronto para as afirmações mais sublimes e para as negações mais ingénuas e medrosas.

BENTO DOMINGUES, O.P. .......................Público, Lisboa, Junho de 2008

Os Actos dos Apóstolos procuraram corrigir essa impressão. S. Paulo, embora o reconhecesse como coluna da Igreja, achava-o um bocado cobarde, deixando-se levar pelas circunstâncias.

Estas festas, de forma mais ou menos aldrabada, lembram que as religiões só têm sentido se servirem para destapar o horizonte do quotidiano rotineiro e para transformar as tristezas em alegria: abrir o céu à terra e a terra ao céu.

2. Hoje, a liturgia oficial trouxe S. Paulo para a festa de S. Pedro, mas não faz dele um santo popular. Sendo o grande génio do cristianismo, não deixa de provocar grandes alergias.

Já nos seus próprios escritos – Epístolas famosas – deparamos com alguém que tem de estar sempre a afirmar-se e a defender-se. Procura a paz e a comunhão, mas provoca uma agitação permanente. Reivindica, a pés juntos, a sua condição de apóstolo, mas lembram-lhe sempre que não fez parte do grupo de Jesus, foi perseguidor dos cristãos e até presidiu ao martírio de Estêvão. Apesar de ter organizado uma campanha internacional de socorro aos pobres da Igreja de Jerusalém, esta, por razões ideológicas, nunca se mostrou agradecida, antes pelo contrário. Agora, fazem dele o inimigo das mulheres e dos homossexuais, alguém que não mexeu uma palha para libertar os escravos, que chegaram a ser dois terços da população do Império romano a que ele pertencia. Para uns, é um moralista chato e rabugento; para outros, até os seus textos de circunstância são transformados em leis universais, válidas em todo o tempo e lugar, isto é, obra de um teólogo profissional, completamente perdido em questões abstractas, sem ligação com a vida do povo. A Carta aos Romanos é um quebra-cabeças para as relações entre cristãos e judeus. Como se isto não bastasse, há quem faça dele o maior traidor da simplicidade evangélica, apresentando-o como o verdadeiro fundador do cristianismo, um concorrente do próprio Jesus.

3. Celebra-se, neste Domingo, a abertura do “Ano Paulino”. Bastará um ano, consagrado ao estudo da sua obra e da sua revolução, para desfazer todos esses preconceitos e aprofundar enigmas que atravessam dois mil anos de história?

Antes de mais, é preciso identificar a complexa geografia cultural e religiosa de S. Paulo. De um lado, havia o Evangelho e, do outro, a Tora (Lei). Com Paulo de Tarso, o cristianismo tornou-se um sistema doutrinal sólido. A sua língua e, até certo ponto, os seus conceitos não vinham de Jesus de Nazaré. Brotavam, sem dúvida, de fontes autenticamente judaicas quanto ao fundo, mas eram gregas quanto à forma, não só a partir da versão grega das Escrituras, mas também dos pensadores e escritores da Diáspora helénica. Esses judeus estavam em diálogo contínuo e profundo com a filosofia e a cultura dos gregos. A eles se deve uma herança escrita da mais alta importância que os cristãos acolheram, desde o começo, e salvaram-na. O judaísmo rabínico preferiu ignorá-la e construiu-se sem ela (1).

Paulo, ao não exigir que os judeus se tornassem gregos, isto é, não-judeus, nem que os gregos se tornassem judeus, revelou a imparcialidade de Deus – não faz acepção de pessoas ou de povos – e fundou a universalidade humana e religiosa: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus. E se vós sois de Cristo, então sois descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa” (Gal 3, 28-29).

Quem assim fala é um judeu – declarado apóstata pela 12ª Bênção da 18ª Oração de Petição judaica – que, em nome de outro judeu, propõe um caminho para a realização da comunhão de toda a humanidade na sua imensa diversidade. George Steiner levanta uma questão que não é possível desenvolver aqui: “esquecemos prontamente que não só Jesus, mas também os autores dos Evangelhos e dos Actos, e todos os seus primeiros seguidores, eram Judeus. Os primórdios do Cristianismo e da história macabra do ódio entre os Judeus estão inextricavelmente entretecidos” (2).

Talvez seja esse um ponto essencial para o diálogo entre cristãos e judeus rabínicos do nosso tempo. No entanto, a revolução desencadeada por Paulo de Tarso não pode ficar circunscrita a problemáticas confessionais. Importa encontrar-se, também, com a voz de alguns filósofos nossos contemporâneos, como Alain Badiou e Giorgio Agamben. Fica para depois.

 

(1)     André Paul, Qumrân et les Esséniens, Paris, Cerf, 2007.

(2)     A Bíblia Hebraica e a Divisão entre Judeus e Cristãos, Lisboa, Relógio d’Água, 2006, 84-85.