O Vaticano II surgiu como libertador ao questionar a persistência da mentalidade da Contra-Reforma – a que alguns chamam “tridentinismo” –, mas também provocou o medo de se cair na anarquia, na irresponsabilidade, na desordem total. A denúncia dos exageros ou do radicalismo serviu, por outro lado, para tornar sagrado, intocável, o que era preciso transformar ou até abolir.
Temos, assim, o problema das exigências da crítica responsável. Supõe o acolhimento de uma herança e a capacidade de a questionar para discernir o que é preciso manter e o que importa deixar cair. Nascemos num país, numa língua, numa cultura, mas com alguma capacidade de contribuir para mudar o próprio país, de mudar de país, de marcar a língua e a cultura em que nascemos e de nos abrirmos a outras. O ser humano realiza-se acolhendo, recusando e transformando o que recebe. O mesmo se passa com a religião.
2. Jesus nasceu numa família fiel observante dos princípios da lei e da tradição judaicas. A reputação de rabi indica que conhecia bem as Escrituras, mesmo não sabendo nós quem foram os seus mestres. Ser discípulo e baptizado por João – antes de encontrar o seu próprio caminho – mostra que ele pertencia a uma corrente do judaísmo, marcado pela pureza dos costumes e o fervor messiânico, características malvistas aos olhos do clero e das autoridades políticas. Embora Jesus estivesse marcado pela piedade judaica, cultivava um grande espírito de independência a respeito da tradição reinante. Alimentava o sentimento da proximidade de Deus, mas tinha reservas frente ao culto do Templo e aos costumes sacralizados que marcavam o quotidiano.
A relação com a religião do seu povo – atravessada, aliás, por várias correntes – obedecia a um critério humanista: as instituições e as expressões religiosas são para o homem, não é o homem para elas. Neste sentido, era também um filósofo da religião. Não é por acaso que algumas comunidades cristãs, para não serem catalogadas no universo das seitas religiosas, preferiam reivindicar o estatuto de escolas filosóficas: “somos da escola do Logos”. Os seguidores de Jesus foram, por isso, considerados ateus. O judaísmo helénico, resultado do encontro da fé judaica com o pensamento grego, já tinha esboçado um precedente.
3. Em nome da salvação, existem formações religiosas que apresentam a divindade como inimiga do ser humano. Daí uma longa história de rivalidades, de exclusões. Deus vive à custa do que rouba aos seres humanos e estes, para se afirmarem, precisam de negar o Deus que os nega.
O próprio nome de Quarta-Feira de Cinzas – que celebrámos na semana passada – pode dar a ideia de humilhação do ser humano: do pó ao pó (“Lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar”). Este realismo materialista diz bem os nossos limites e a nossa integração na natureza, mas não exprime a dignidade humana. Esta também não é salva pela hipocrisia religiosa que o texto do Evangelho, dessa liturgia, denuncia de forma cruel. Não é essa, no entanto, a máscara maior da religião.
Celebra-se hoje o primeiro Domingo da Quaresma. Não se destina a resolver questões de há dois mil anos, mas também não podemos prescindir do que se passou com Jesus. Os textos mostram-no retirado no deserto, depois de uma experiência mística que punha tudo em causa. O tempo dos sonhos mais puros – os sonhos messiânicos – transformou-se no tempo das tentações mais diabólicas, isto é, na sedução pelo poder total, mediante a dominação económica, política e religiosa em nome do bem de um povo.
Jesus resistiu a tudo isso, a partir de uma convicção radical que ele transformou numa crítica metódica: essas seduções não vinham de Deus porque eram propostas que enganavam as fomes mais profundas do ser humano.
Há muitas receitas para a Quaresma dos cristãos. É preciso não as deixar cair no mero cumprimento de um ritual. O próprio Papa retomou a proposta tradicional de um tempo dedicado à oração, ao jejum e à esmola, que não deve ser reduzida a algumas orações mais, à higiene alimentar e aos tostões de reserva para os pobres. Se assim for, serve apenas para reforçar as máscaras que nos escondem de nós mesmos e que disfarçam a situação real dos excluídos.
Aprender a viver é aprender a morrer a tudo o que nos estraga sob o ponto de vista intelectual, afectivo e social. Os 40 dias de Quaresma são uma bênção. Um tempo de retiro destinado a aprender a resistir à tirania diabólica da publicidade que nos impõe modelos de vida e de organização económica, social, política, cultural, religiosa e irreligiosa, a nível local e global, pessoal e familiar. Um tempo para a descoberta do que é essencial, supérfluo e prejudicial. Um tempo para descobrir as sugestões de Deus, dentro e fora de nós. |