O embaraço da confissão



A Eucaristia não é um congelado eterno que se descongela semana a semana. É recriar as celebrações continuamente.

 

BENTO DOMINGUES, O.P. .......................Público, Lisboa, 20.01.2008

1. Anunciei, aqui, um debate sobre “O embaraço da Confissão” que se realizou na passada segunda feira, no novo Convento de S. Domingos. Foi muito concorrido e muito partilhado. O texto que escrevi para o “Público” não pretendia ser mais do que um alerta para uma problemática que muitos procuram ignorar e que, de facto, o debate mostrou a sua urgência e a sua real dificuldade. Não estamos só numa questão de puro ritual da Igreja católica. Importa não confundir laicidade – separação entre Religião e Estado – com uma sociedade que já não teria interrogações de carácter religioso e, no nosso caso, que já não teria referências cristãs. Além disso, se há muito de irracional nas religiões, a razão profunda é religiosa.

As práticas sacramentais, litúrgicas – quando não são puro ritualismo vazio – estão impregnadas de questões teológicas, antropológicas, éticas e estéticas. É verdade que estamos num país que viveu mais de um século sem se preocupar com o alcance da reflexão teológica. Saberemos que a bibliografia mais produtiva do planeta, aquela que conta com um número maior de publicações, é precisamente a teologia?

Em relação às denúncias do texto do Domingo passado, fizeram-me a observação habitual: não se estará a correr o risco de deitar fora o bebé com a água suja do banho? Ao sublinhar os maus caminhos da Confissão, desde que se tornou obrigatória, no IV Concílio de Latrão (1215) e sustentáculo fundamental da vida cristã, no Concílio de Trento, não estaria eu a ignorar os seus reais benefícios e a importância do confronto de um cristão com o responsável da comunidade acerca da orientação da sua vida?

É certo que não somos bons juízes em causa própria e quatro olhos vêem mais do que dois. Através do confronto com outra pessoa qualificada, podemos ser muito mais verdadeiros acerca de nós próprios. A auto-medicação não é muito aconselhável. Quando, pelo contrário, no processo de conversão, se junta a confissão dos pecados, a penitência e a direcção espiritual, não terá esse caminho uma seriedade que o anonimato da celebração comunitária da Missa não pode proporcionar? Por outro lado, ao fazer da Eucaristia a grande celebração da confissão, da misericórdia e do perdão dos pecados, não estaria eu a carregar a Missa – o grande sacramento da alegria pascal – com a tristeza que envolve a repetição de que somos pecadores, sem ninguém que nos diga pessoalmente, conhecendo as nossas dificuldades, “vai em paz e não peques mais”? Além disso, se há dificuldades com a “confissão auricular”, são também muitas as Missas que se tornaram uma penitência insuportável.

2. Não tenho boas respostas para estas e outras boas questões. O importante é abrir e continuar um debate que não pode ser encerrado apenas com o Direito Canónico: “A confissão individual e íntegra e a absolvição constituem o único modo ordinário pelo qual o fiel, consciente de pecado grave, se reconcilia com Deus e com a Igreja; somente em impossibilidade física ou moral o escusa desta forma de confissão, podendo neste caso obter-se a reconciliação também por outros meios” (cân. 960).

No Ocidente, a confissão passou por muitas fases e teve muitos rostos. De permitida só uma vez na vida – reservando-a, por cautela, para a hora da morte – tornou-se uma obrigação anual, uma recomendação muito frequente e, em algumas comunidades, uma obrigação semanal. O conhecimento da história ajuda-nos a não elevar à categoria de absoluto o que é muito relativo, sem cair no relativismo ou na indiferença. Não basta, porém, conhecer a sua história na Igreja católica. Esta Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos –  isto é, pela sua reconciliação – poderia servir para a descoberta da história e da actualidade das diferentes formas de confissão e perdão dos pecados nas outras Igrejas e religiões.

3. A grande alergia de pequenos e grandes à confissão que é também a causa maior da “descrença” de muitos que intimamente aceitam Cristo e o Evangelho, denunciada por D. António Ferreira Gomes, nas Cartas ao Papa, deveria merecer mais atenção da hierarquia católica. Não basta denunciar e também não é suficiente ter cristãos esclarecidos. É preciso abrir caminhos para a educação ética, para a educação da vontade, para uma moral não de normas e pecados, mas de virtudes, isto é, de robustecimento espiritual. Há muitas situações e muitos problemas interiores ou de relação que nunca poderemos resolver sozinhos. São situações graves que pedem remédios apropriados.

De qualquer modo, são inaceitáveis práticas sacramentais e litúrgicas tecidas com imagens doentias de Deus, que se vão transmitindo de geração em geração, sem medir os seus efeitos desastrosos. Só um Deus de compaixão pode ajudar os seres humanos a ser compassivos uns com os outros.

Ao propor a Eucaristia, celebração semanal da alegria da Páscoa, como o grande sacramento da misericórdia de Deus e da transfiguração da vida, não penso em qualquer automatismo. A Eucaristia não é um congelado eterno que se descongela semana a semana. É recriar as celebrações continuamente.