Semana Santa e
Europa mundo



1. Domingo de Ramos, começo da Semana Santa. Outros dirão: começo da semana do crime planeado e da manipulação política e religiosa das paixões populares. Para a fé cristã, é sobretudo a recusa do niilismo, a semana da invencível esperança.

BENTO DOMINGUES, O.P. .......................Público, Lisboa, 2 de Abril de 2007

É contra o niilismo europeu que estão a ser celebrados os 50 anos da União. Bento XVI teme que sejam esquecidas as raízes cristãs da Europa. Álvaro Vasconcelos, director do Instituto de Estudos de Segurança da UE, pensa que é preciso desterrar as definições culturais e religiosas da identidade europeia para chegar à "Europa Mundo".

Nesta Semana Santa, uma das perguntas importantes a fazer seria a seguinte: poderá um católico esforçar-se pelo reconhecimento público das raízes cristãs da Europa – não são as únicas – e, sem se renegar, trabalhar por uma "Europa Mundo" que não pode ser confundida com um "clube cristão"?

2. Jesus Cristo nasceu, provavelmente, cerca do ano 4 antes de Cristo ou, como agora se diz, 4 anos antes da era comum. Calcula-se que tenha morrido a 7 de Abril do ano 30. Viveu na Galileia e na Judeia, ocupadas por Roma, e morreu em Jerusalém. Ainda ninguém encontrou as suas memórias escritas pelo seu punho. Temos apenas testemunhos dos que viram nele a forma extrema de fazer da vida um protesto e um dom. Um protesto contra tudo o que faz da existência uma prisão; um dom de alegria e esperança para aqueles que tinham sido excluídos de Deus e da sociedade pela religião oficial. Vendo bem, Jesus, da forma mais pacífica, subverteu tudo: a religião, a teologia e a antropologia. Deus não é a projecção dos desejos de dominação, nem o tapa buracos das fraquezas humanas, nem está circunscrito aos interesses de um povo, de uma religião ou de uma ideologia. É a própria incarnação do Amor apaixonado que vence todas as fronteiras. Só a compaixão ilimitada o poderá evocar na história humana que se realiza, ou atraiçoa, em todas as etnias e culturas.

Faz parte da identidade de Jesus a relação com Deus, o Deus no qual vivemos, nos movemos e existimos. Para ele, não havia um Deus dos judeus, outro dos gentios. As raízes geográficas de Jesus estavam na Palestina, as suas raízes teológicas estavam no coração de um Deus onde há morada para todos.

Foi em muito pouco tempo – entre dois e três anos – que Jesus, nas suas atitudes, gestos e palavras, revelou essa nova e misteriosa maneira de Deus ser Deus e do homem se tornar humano. A sua intervenção foi interrompida pela pena de morte. Na cruz, era um abandonado entre o céu e a terra. E no acto em que era excluído do mundo, entregou-se ao misterioso silêncio de Deus incluindo, no seu amor, os próprios inimigos, os que o entregavam à morte. Há gestos singulares que tocam os confins da realidade.

Para o Rabino Yosef Emden (1697-1776), «o Nazareno trouxe uma graça dupla ao mundo. De um lado, fortaleceu majestosamente a Torá de Moisés (...) e nenhum dos nossos Sábios falou com tamanha força sobre o carácter imutável da Torá. Do outro lado fez muito bem aos Gentios (desde que não deturpem o seu propósito, como fizeram alguns néscios porque não perceberam o propósito dos autores dos Evangelhos)».

3. Se quisermos falar das raízes cristãs da Europa, só nos podemos referir àquilo que, na Europa, sendo singular, abre caminho para o encontro de todos os povos e culturas, com ou sem religião. O que, na Europa, suscite nacionalismo xenófobo e exclusão, nunca poderá reclamar-se das raízes cristãs. É pelos frutos que se conhece a árvore. Quando João Paulo II, no ano 2000, pediu perdão pelo que aconteceu na Europa – cruzadas, inquisição, guerras de religião, holocausto – e pediu perdão pelo que a chamada "Europa cristã" fez contra os índios e contra os africanos escravizados, estava a pedir perdão pelas traições à Raiz, pelas traições ao projecto de Jesus Cristo.

O que não pode ser esquecido, na construção europeia, são todos aqueles que – religiosos ou não – contribuíram para erradicar a intolerância, para abrir os caminhos à liberdade religiosa, para promover a união na diferença. O catalão Ramón Lull (1232-1316) é uma dessas figuras exemplares. Mas, quando a Europa começou a desenhar o seu poder imperial, foi Bartolomeu de Las Casas (1474-1566), convertido aos ideais da comunidade dominicana de Pedro de Córdoba e Montesinos, que enfrentou os poderes de Espanha e de Portugal para impedir a destruição das Índias e da África.

Sem se tornar um espaço de acolhimento de todas as diferenças, não há futuro para UE. É essa a sua profunda identidade interna – a Europa Mundo – que se deve manifestar na sua actuação internacional. Uma Europa que resiste às tentações de se tornar um império em competição com outros impérios.

O católico Aristides de Sousa Mendes (1885-1954) soube fazer do Consulado de Bordéus, contra as ordens de Salazar, a páscoa, a passagem de judeus e não judeus para a liberdade. Este português, que arriscou e perdeu tudo por fidelidade à sua consciência, tinha a sua raiz em Cristo e trabalhava para a Europa do futuro.