Católicos sem arrogância

 

 

1. O mundo não é um infantário e a Igreja não é feita só de meninos de coro.

Se não existem sociedades sem conflitos, também não existe Igreja sem histórias de desentendimentos e divisões.

BENTO DOMINGUES, O.P. ...............................Público, Lisboa, 21.01.2007

Para alguns vaticanistas, Bento XVI começou 2007 com um passo em falso numa questão melindrosa. Em Novembro passado, tinha nomeado, para Arcebispo de Varsóvia – primeira figura da hierarquia polaca – o Bispo Stanislaw Wielgus. Entretanto, surgiram acusações públicas de que este tinha colaborado com a polícia secreta durante o regime comunista. O Papa reafirmou, no entanto, toda a confiança no seu nomeado. A Conferência Episcopal Polaca, por seu lado, teria informado que, numa conversa com representantes dos serviços de segurança, não detectara qualquer colaboração imoral. O Arcebispo nomeado rejeitou todas as acusações e não hesitou em tomar posse canónica da Diocese a 05/01/07.

A partir desse momento, tudo se precipita como no desenlace de um filme de espionagem. Nesse mesmo dia, uma comissão da Igreja polaca reconhece que o Arcebispo de Varsóvia tinha sido um espia, isto é, havia colaborado com a polícia secreta comunista, durante vinte anos (1967-1987). Diante desta evidência, o Núncio Apostólico, Jozef Kowalczyk, sente-se enganado e reage contra a Conferência Episcopal e contra a informação e juramento de D. Wielgus que ocultara uma situação pessoal grave e que, agora, se revelava publicamente incontornável. Dois dias depois de ter tomado posse canónica, no próprio Domingo da cerimónia de entrada oficial na catedral de São João Baptista (07/01/07), sob pressão do Vaticano, o Arcebispo de Varsóvia não tem outro remédio senão renunciar e demitiu-se.

Para uns, tudo isto parece ridiculamente infantil; para outros, apresenta-se como uma tragédia para a Igreja polaca e um duro golpe no prestígio de Bento XVI, ao mostrar-se excessivamente voluntarista perante situações complexas, como se estas tivessem de se vergar aos seus desígnios pessoais.

2. É preciso ir mais devagar nessas apreciações. Não se pode esquecer que a Polónia, sem ser caso único, é quase um só povo, uma só língua, uma só cultura. A história da Igreja católica neste país confunde-se, desde o começo, com a sua identidade, nunca renegada. Mais de 90% dos polacos declaram-se católicos e, cerca de metade, vão regularmente à missa em igrejas sempre cheias.

Nos finais dos anos setenta, a Polónia, ainda dominada por um regime comunista, já está em Roma, no centro da catolicidade. O Papa, de um dos mais longos pontificados, é polaco. Criou-se mesmo a ideia, algo mítica, de que foi João Paulo II quem derrubou o império comunista e passou a levar a todo o mundo o catolicismo puro, duro, alegre e sofredor em que fora criado. Nestas circunstâncias, não é de espantar que João Paulo II fosse como um deus para o seu povo. Raras vezes a "papolatria" foi tão apaixonada.

Por mais ridículas que possam parecer as peripécias da nomeação e tomada de posse de Stanislaw Wielgus, fazem parte da história católica de um povo que vivia num regime comunista que lhe controlava os movimentos, mas não lhe possuía a alma. Não admira, por isso, que o povo católico estivesse pronto não só a perdoar estas fraquezas, como a considerá-las, quando muito, "pecados veniais". Assim se exprimiu o próprio Prémio Nobel da Paz, Lech Walesa, que julga desproporcionadas as consequências actuais da passada colaboração do Arcebispo com a polícia comunista. O antigo dirigente do sindicato Solidariedade aponta o dedo aos comunistas, que ainda estão bem organizados, são poderosos e temíveis, e aos ex-agentes dos "serviços" de segurança, especialistas da desestabilização. Como o governo ameaça retirar as reformas aos antigos agentes da polícia secreta e de os excluir dos empregos públicos, eles reagem. É preciso, todavia, não esquecer que a recomposição política do país procura re-interpretar esse passado. A direita deseja mostrar-se a incarnação da Igreja pura e fiel no tempo da perseguição. Os ajustes de contas com o passado não costumam ser obra de santos canonizados.

3. A Polónia conta, actualmente, com mais de 28 000 padres. Os historiadores calculam que apenas dez a quinze por cento dos membros do clero colaboraram, mais ou menos activamente, com a terrível polícia secreta, embora a Igreja católica tenha sido a força principal de oposição ao comunismo, durante os quarenta anos de ditadura, tendo em conta, em cada momento, a correlação de forças.

Já em Agosto de 2006, os bispos tinham adoptado uma resolução, apelando aos membros colaboracionistas do clero a fazerem o seu mea culpa. Esse texto ficou, no entanto, letra morta. Agora, para responder à pressão cada vez mais insistente da opinião pública, o Episcopado, ainda que de várias tendências, decidiu criar, por todo país, comissões históricas regionais para verificar o passado dos padres e outras pessoas da Igreja. É certo que algumas dioceses já tinham organizado comissões desse género, mas outras não tinham feito nada.

O padre Tadeusz Isakowicz-Zaleski que, desde há um ano, desenvolve uma luta solitária pela verdade na Igreja polaca, louva esta decisão que é importante para a missão social que os bispos desempenham e não, apenas, para a sua missão religiosa. Informou também que, no próximo dia 28 de Fevereiro, publicará um livro acerca dos casos de colaboração com a polícia secreta. Lamenta que os responsáveis da Igreja, que ele já tinha alertado no ano passado, tenham reagido tão tarde. Se a decisão que tomaram agora, tivesse sido assumida mais cedo, o preço a pagar não seria tão elevado.

Para o cardeal Tarcisio Bertone, a segunda figura do Vaticano, esta decisão é muito importante, mas é unilateral. Por aquilo que declarou à agência Ansa, ficaria mais contente se este exame fosse feito, igualmente, aos funcionários dos partidos, aos homens políticos e aos administradores públicos da sociedade polaca.

Em qualquer outro país, estas revelações teriam consequências graves. A Polónia é diferente, mas não tem promessas divinas de catolicismo eterno. A arrogância do nacionalismo católico não é boa conselheira para o futuro da fé. Não se nasce católico e o baptismo não é uma garantia definitiva. O jogo da graça, da liberdade e da responsabilidade exige humildade e conversão permanente.