Fátima,

cada vez mais?

BENTO DOMINGUES, O.P. ...............Público, Lisboa, 15 de Outubro de 2007

1. Sem falar dos indiferentes, Fátima é amada por uns e detestada por outros. Em nome da sua leitura do Evangelho, o Padre Mário de Oliveira anda empenhado na campanha: “Fátima, nunca mais”. O Reitor do Santuário, Padre Luciano Guerra, investiu longamente em “Fátima, cada vez mais”. Acreditar ou não acreditar nas “Aparições” não afecta a essência da fé cristã. Viva a santa liberdade dos filhos de Deus e vivam os peregrinos que não se conformam com uma vida oca por dentro ou por fora!

Não muito longe da Cova da Iria, a partir de 1915, crianças rurais puseram a circular rumores de Anjos. A figura que se apresentou como Anjo da Paz e Anjo de Portugal ensinou-lhes várias orações. Antes de lhes dar a comunhão, no Outono de 1916, teria rezado com elas uma oração muito complexa e programática: à Santíssima Trindade, à Eucaristia, aos Corações de Jesus e Maria, pela reparação dos ultrajes, sacrilégios e indiferenças e pela conversão dos pecadores.

Nossa Senhora só entraria em acção em 1917. Como os Anjos, também ela não gostava do Inverno. Manifestou-se na Primavera, no Verão e no Outono. Não exigiu nenhum monumento para marcar o lugar. Bastava-lhe uma capelinha de feição popular para populares. A 13 de Maio de 1928, porém, foi colocada a primeira pedra de uma igreja, que seria sagrada apenas em 1953 e elevada a “basílica menor” em 1954. Entretanto, o mundo já tinha sofrido muitas tragédias e, em Portugal, iriam começar as agonias de um regime político-religioso.

No passado dia 12 – 90 anos depois – foi celebrada a Dedicação da Igreja da Santíssima Trindade, o maior templo de Portugal para gente sentada. Para gente de pé, continua o recinto da Cova da Iria, a maior basílica do mundo a céu aberto.

Ninguém se deslocaria a Fátima por causa da beleza dos seus monumentos. A Cova da Iria não pertencia ao roteiro de Alcobaça, Batalha ou Tomar. Tirando a capela dos Padres Dominicanos, a das Irmãs de S. José de Cluny e o Museu de Arte Sacra e Etnologia dos Missionários da Consolata, o melhor seria fechar os olhos. A representação da Vida de Cristo, recentemente inaugurada, veio coroar o ridículo em tamanho natural. Fala-se de concursos para novos artistas em Fátima. Só um buldózer lhes poderia abrir espaço no reino do mau gosto semeado por todas as ruas da Cova da Iria, embora saiba que seria um desastre comercial como o lamentado pelos ourives de Éfeso, diante da pregação de S. Paulo (Act 19, 23ss). Tenho, no entanto, de saudar a “peregrinação estética” de Marco Daniel Duarte que não deixou escapar nenhum sinal de ruptura com a fealdade, embora a sua generosidade inclusivista me pareça excessiva (1).

2. As palavras terminadas em dade evocam abstracções. Talvez por isso, a Santíssima Trindade não seja, no Ocidente, uma das preocupações mais insistentes. A sua figuração provoca equívocos. As explicações teológicas da íntima e misteriosa vida de Deus perdem-se numa matemática pouco convincente: três são um, um são três. É, no entanto, a melhor expressão da fé cristã: este Deus não é solidão, é a alma do mundo uno e plural.

Alegra-me que o grandioso templo, agora inaugurado, exprima a fé na Santíssima Trindade, a fé que une o Conselho Ecuménico das Igrejas. Só peço que Fátima se torne um espaço ecuménico irrestrito, um grande lugar para o encontro inter-religioso: Deus é Pai de toda a gente, seja qual for a sua religião; o seu Filho é irmão de todos os seres humanos; o Espírito Santo sopra onde quer sem pedir licença a nenhuma Igreja, a nenhuma religião, a nenhum movimento. Por esse caminho, não seria tão abusivo falar de “Fátima, Altar do Mundo”.

3. Goste-se ou não, esta igreja marca uma diferença. A Cruz Alta do alemão Robert Shad é um grito da beleza do amor. As hierarquias das Igrejas devem fazer sentir aos artistas que, no âmbito da imensa simbólica cristã, humano-divina, estão em sua casa.

Repete-se: foi uma obra muito cara, mas paga com os donativos dos peregrinos. Não se esqueça, porém, que a divindade não precisa de templos para habitar entre nós. O coração humano, em espírito e verdade, é a sua morada e o mistério da Santíssima Trindade, a nossa ilimitada habitação: nele vivemos, nos movemos e existimos (Act 17, 28).

Na Bênção dos Doentes, antes da Procissão do Adeus, ouvi, anos a fio, o clamor do Evangelho: Senhor, se quiserdes, podeis curar-me! É certo que Fátima nunca foi um santuário de milagres exteriores. Também Jesus, através das curas que realizou, nunca pretendeu substituir os avanços da medicina. Ele apenas atirava uma pedrada ao charco da indiferença. O grande milagre, ainda hoje, é a mudança do coração: saber colocar as descobertas científicas e as novas tecnologias ao serviço de todos, a começar pelos mais pobres. Poderá o Santuário de Fátima profetizar, com gestos concretos, esta conversão?

As ciências, a interrogação religiosa, a estética e a ética nunca podem andar separadas.

(1) Arte Sacra em Fátima. Uma peregrinação estética, Fátima, Fundação Arca da Aliança, 2006.