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BENTO DOMINGUES, O.P. ........................Público, Lisboa, Outubro de 2006 | |
Sei que também o "Dia do Senhor" se pode transformar numa escravatura, embora tenha nascido para nos tornar senhores de toda a semana. Segundo as narrativas do Novo Testamento, Jesus tinha um prazer especial em rebentar o colete de obrigações e proibições do sábado porque, em nome da liberdade, se tinha tornado uma prisão. Já não era o sábado que guardava a alegria do povo, era o povo que tinha de guardar o sábado. O Nazareno cunhou, em nome do humanismo, a expressão máxima da crítica a todas as religiões: "não é o homem para o sábado, mas o sábado para o homem". Confesso que, no entanto, me irritam as repetidas denúncias do sábado judeu, lidas nas celebrações cristãs, esquecendo que são espuma de querelas entre várias tendências do mundo judaico. Escolhidas para interpelar as prisões religiosas dos cristãos, acabam na hipocrisia de pretenderem marcar uma superioridade: nós não somos legalistas como os fariseus! E mais: servem de biombo para não olhar de frente a nossa história litúrgica de prescrições e proibições, por vezes não só ridículas, mas perversas: chegou-se ao ponto de fazer da Missa de domingo uma obrigação sob pena de pecado mortal. Trocar de cadeia não é sair em liberdade. Não esqueçamos S. Paulo: «Cristo libertou-vos para a liberdade, não vos deixeis prender de novo ao jugo da escravidão» (Gal 5, 1). Não me pertence falar acerca da actual prática do sábado judaico. Com o fim da civilização paroquial e com a secularização da sociedade, os cristãos que não vão regularmente à Missa – embora aqui esteja a pensar sobretudo nos católicos – são classificados como "não-praticantes". Esta contabilidade sociológica transformou-se numa falsa avaliação teológica. Reduz o cristianismo aos actos do culto, quando este devia ser a alma de toda a semana orientada pelo serviço da justiça e da solidariedade, pela busca da alegria, seja qual for a profissão de cada um. O domingo existe para se respirar o ar de Deus na beleza do mundo e no encontro dos irmãos. Não é só o comodismo nem a falta de espírito cristão que leva a abandonar a chamada "prática dominical". Alguns trocam-na por exercícios bem mais custosos. Além de outras razões, talvez seja a perda de sentido lúdico e espiritual da festa de Deus na festa de libertação do que há de mais profundo em cada pessoa, que esvazia o domingo. 2. Os textos do domingo passado e deste vão directos à essência das coisas. Estão centrados na descoberta dos caminhos da sabedoria de viver, mais importante que toda a riqueza do mundo (Sab 7, 7-11). O primeiro passo consiste em descobrir as coisas e os desejos que mandam em nós e impedem a realização dos nossos sonhos mais profundos. A este respeito, o Evangelho de S. Marcos conta uma história exemplar (10, 17-30). Um homem corre para Jesus com o intuito de ficar a saber como é que se ganha, não só a vida que a riqueza consegue neste mundo, mas a vida eterna. Era de certeza um homem de negócios bem sucedido e cumpridor da ética dos Mandamentos. Jesus sentiu simpatia por aquele esforçado negociante da vida e propôs-lhe um salto inesperado: «Vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-me. Ele, porém, saiu triste com esta proposta, pois era muito rico» e não tinha alma para uma Fundação! Os próprios discípulos ficaram escandalizados com o desplante de Jesus. A ideologia dominante era a teologia do sucesso: a riqueza é não só um desejo de todos, mas uma bênção divina e a pobreza uma maldição. Outra, porém, era a ideia do novo Rabi: «Como será difícil para os que têm riqueza entrar no Reino de Deus!» Os discípulos ficaram espantados e Jesus, em vez de atenuar esta observação, insistiu: «Meus filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus! É mais fácil um camelo – corda grossa para segurar os barcos – entrar pelo fundo de uma agulha do que um rico salvar-se». O Evangelho de S. Lucas recolheu muitas outras declarações de Jesus que mostram a oposição entre a obsessão pela riqueza e a busca do Reino de Deus: não se pode servir a Deus e ao Dinheiro. E sublinha que essas declarações eram tão estranhas que faziam rir os fariseus, amigos do dinheiro (Lc 16, 13-15). Não tiremos daí conclusões precipitadas. As narrativas do Novo Testamento são tecidos de muitas cores e feitios. Ao contrário de João Baptista, Jesus não era um austero. Gostava da vida e das coisas boas da vida. Não se gloriava disso, porque a questão não estava aí: «Veio João Baptista que não come pão e não bebe vinho e dizeis: tem demónio! Veio o Filho do Homem, que come e bebe e dizeis: eis aí um glutão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores. Mas a Sabedoria é justificada por todos os seus filhos» (Lc 7, 33-35). Que sabedoria era essa? O capítulo 25 do Evangelho de S. Mateus, com as parábolas acerca das jovens loucas e das prudentes, dos talentos e do julgamento da história humana, mostra bem as exigências rigorosas da economia e a sua finalidade. Ele não era um inimigo do desenvolvimento. O seu problema era outro: a quem aproveita o desenvolvimento? Como ficam os que não têm unhas nem viola? Como é possível deixar uns afundados no luxo e outros na miséria? Uns à mesa e outros à porta? (Lc 16, 19-31). O que Ele denunciava era o abismo entre esses mundos. Ainda hoje, a queixa é a mesma. Até em Portugal. Mas este abismo não nasce do desejo de ser, mas do desejo de ter: «onde está o vosso tesouro aí está também o vosso coração». A questão não está na riqueza, mas em deixar-se possuir pela lógica da riqueza: quanto mais tem, mais quer. A sabedoria que Jesus propõe não é a abolição, mas a conversão do desejo, a nossa libertação até à raiz. |
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