Transfigurações

 

 

 
 
BENTO DOMINGUES, O.P. .................................Público, Lisboa, 11.03.2006
O retiro quaresmal deve servir, em primeiro lugar, para re-examinar e transfigurar as nossas opressivas representações de Deus. Ele não pode surgir como "um crime contra a vida"

1.O tempo da Quaresma - tempo da transfiguração da memória, do presente e da profecia - não é ainda, para todos os católicos, um tempo de retiro. Está dotado, no entanto, com recursos que, se forem usados, podem transfigurar a vida.

Há pessoas que gastam fortunas com operações plásticas para não verem, no seu rosto, as marcas da idade. E compreende-se. Já S. Paulo se referiu à depressão que elas podem provocar. Lembrou, todavia, outras possibilidades menos dispendiosas e mais duradouras: "Não nos deixemos abater. Pelo contrário. Embora, em nós, o homem exterior vá caminhando para a sua ruína, o homem interior renova-se dia a dia (...). Não olhemos para as coisas que se vêem, mas para as que se não vêem. O que se vê é transitório. O que não se vê é eterno" (2Cor 4, 16-18).

Com outra antropologia, Yeats não andava longe de Paulo: "Nenhum homem pode criar como criaram Shakespeare, Homero e Sófocles se não acreditar, com todo o seu sangue e com todos os seus nervos, que a alma do homem é imortal." Tomás de Aquino acrescentaria que a alma imortal, para se sentir bem e completa, exige um corpo de alegria, sem rugas nem manchas, pois, como escreveu, "a minha alma não sou eu"! O ser humano, nos seus próprios limites, é no mundo o que excede o mundo.

2. O retiro quaresmal não é para preparar a ressurreição futura. O importante é captar os fluxos de vida espiritual que percorrem o universo em novas experiências de transfiguração da existência quotidiana.

Lamenta-se, e com alguma razão, que os grandes meios de comunicação social engordam quase só com notícias da desgraça e com a exibição de banalidades. Em vez de engrossar essas queixas, é preferível um longo jejum dessas imagens em troca da fruição da natureza, de boa música, de leitura, de meditação e oração, de partilha com os pobres, da presença aos doentes e idosos. Por aí corre a vida que mais vale.

A surdez metafísica, poética e musical perde-nos do mundo da beleza. A falta de justiça e compaixão perde-nos de Deus e dos seres humanos.

Um "retiro espiritual" é, em primeiro lugar, a busca de Deus que perdemos nas suas sombras. Não se pode dizer, sem mais, que Deus acabou. Através do revisionismo dos símbolos cristãos e dos romances com algum fundo religioso, Deus converteu-se num best seller que enche de novos motivos as livrarias de várias partes do mundo. El País acaba de noticiar que, só em Espanha, desde o ano 2000, foram registados 1085 títulos.

Talvez seja melhor ocupar-se menos com tantas notícias de mortes e ressurgimentos de Deus e muito mais com o uso que se faz dessa palavra. No seu Anti-Cristo, Nietzsche tem uma observação decisiva: "O que nos distingue a nós não é isto de não encontrar nenhum Deus nem na história, nem na natureza, nem detrás da natureza, mas de ressentir o que foi venerado sob o nome de "Deus", não como "divino", mas como deplorável, absurdo, prejudicial e não somente como um erro, mas como um crime contra a vida."

Hoje, na Missa, são lidos alguns fragmentos de uma das mais belas e dramáticas narrativas da Bíblia, o sacrifício do patriarca Abraão (Génesis 22, 1-18), ao assumir a terrível ordem divina: "Toma o teu filho, o teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à terra de Moriá, onde oferecerás, em holocausto, num dos montes que eu te indicar."

Foi tudo preparado e realizado como mandava o cruel rito sacrificial até ao acender a fogueira. Inesperadamente, o "Anjo do Senhor" impediu a consumação da imolação à divindade. Segundo a narrativa, Deus mostra-se satisfeito com a forma como Abraão venceu a prova, pela obediência incondicional: "Agora sei que, na verdade, temes a Deus, uma vez que não me recusaste o teu filho único." Segue-se a recompensa com uma descendência numerosa e guerreira...

A beleza da narrativa já foi exaltada e cantada muitas vezes. Kierkegaard deixou-nos de Abraão um retrato perturbador: "Houve grandes homens pela sua energia, sabedoria, esperança ou amor, mas ele foi o maior de todos: grande pela energia cuja força é a fraqueza, grande pelo saber cujo segredo é a loucura, pela esperança cuja forma é a demência, pelo amor que é ódio a si próprio" (1).

O judaísmo, o cristianismo e o islão são três religiões que acolhem Abraão como seu patriarca. Que interpretações fazem do sacrifício de Abraão? Deus nos livre de leituras fundamentalistas da insondável "vontade de Deus"!

Proponho a seguinte: muitas religiões exigiam a imolação de seres humanos à divindade. É verdade que, no Levítico (18, 21), estão proibidos sacrifícios a Moloc. A própria proibição mostra que os sacrifícios humanos existiam. A narrativa joga, a meu ver, com a palavra "Deus" em dois registos distintos. No primeiro, procura-se exaltar a fé, a confiança e a obediência de Abraão até ao absurdo. Mas perguntemos: o Deus que a exige é verdadeiramente divino ou Moloc, um ídolo sanguinário? No segundo, a encenação dramática é uma soleníssima condenação dos sacrifícios humanos. Quem os exige, mesmo quando é chamado Deus, é a sua cruel negação. Deus é justiça e misericórdia. A sua vontade não pode ser a humilhação das criaturas. Embora com propósitos diferentes, apetece lembrar, aqui, a paradoxal oração do mestre Eckhart: "Peço a Deus que me livre de deus"...

O retiro quaresmal deve servir, em primeiro lugar, para re-examinar e transfigurar as nossas opressivas representações de Deus. Ele não pode surgir como "um crime contra a vida".

A intervenção de Jesus contra usos, costumes e instituições que sacrificam a vida das pessoas em nome de Deus foi tão perturbadora que os seus contemporâneos o caluniaram como um possesso do demónio (Mc 3, 22-30). Perante isso, Jesus também precisou de se retirar, para o monte, com alguns discípulos. Conferiu o seu caminho com as vozes mais autênticas da tradição de Israel: Moisés e Elias. Nesse retiro, os discípulos ouviram a voz do céu que proclamava a verdadeira identidade de Jesus: "Este é o meu filho amado, ouvi-O" (Mc 9, 2-8). A identidade de Jesus e a nossa.

 
(1) Temor e Tremor, Lisboa, Guimarães & Ca, 1959, pp. 37-38.