Tanta religião,
meu Deus!

 

 

 

 

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ................................Público, Lisboa,05.03.2006
A querela das imagens marcou o judaísmo, o islão, o cristianismo e não só. As imagens estavam ligadas ao poder. Eram instrumentos de propaganda

Haverá religião a mais ou religião a menos? Poderemos distinguir entre boas e más religiões? Não seria melhor acabar com este vício ancestral?

Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), teólogo protestante e activista contra o Governo de Hitler, passou vários anos na cadeia e aí viveu com uma disciplina secreta de meditação e oração. Foi executado nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial pelo regime nazi. Numa das suas Cartas de Prisão (30-04-44), escreveu: "O tempo em que se podia dizer tudo com simples palavras - fossem elas teológicas ou piedosas - já passou. Também já passou o tempo da interioridade e da consciência. Em suma: passou o tempo da religião. Caminhamos para uma época sem qualquer religião. Os homens, como são hoje, não conseguem ser "religiosos"."

Essas cartas fizeram correr muita tinta e provocaram debates que não cabem aqui. No princípio dos anos 70, a escatologia secular - a ideia da história como progresso e crescimento contínuos - recebeu um forte abalo com o primeiro choque petrolífero. As sociedades entraram numa incerteza permanente pela rapidez das mudanças em todos os domínios. Não se estava, no entanto, perante o desaparecimento das crenças religiosas. Pelo contrário. Multiplicaram-se. Este fenómeno plurifacetado levou a sociologia das religiões a reconsiderar a visão que tinha das relações entre modernidade e religião. Deixou de a pensar, apenas, sob o prisma exclusivo do desencantamento racional do mundo e passou a manifestar um maior interesse pelos processos de desconstrução e recomposição das crenças que dão um sentido à experiência subjectiva dos indivíduos. Crenças essas inscritas em práticas, linguagens, gestos, automatismos que caracterizam o chamado "crer" contemporâneo.

Como diz Daniéle Hervieu-Léger, se nos empenharmos na via da investigação das crenças contemporâneas, devemos rapidamente admitir que o religioso não se define, unicamente, através dos objectos sociais (as "religiões") nos quais se manifesta de maneira compacta e concentrada. O religioso é uma dimensão transversal do fenómeno humano. Actua, de modo activo ou latente, de forma explícita ou implícita, em toda a espessura da realidade social, cultural e psicológica, segundo as modalidades próprias de cada uma das civilizações, no seio das quais nos esforçamos por identificar a sua presença (1).

Os sociólogos - acrescenta a mesma investigadora -, habituados a estudar as lógicas das religiões institucionalizadas, já não sabem, se assim se pode dizer, por que ponta pegar na religião.

2. Nos últimos tempos, o grande acontecimento mediático internacional esteve centrado nos efeitos dos célebres cartoons sobre Maomé, o profeta do islão.

A querela das imagens marcou o judaísmo, o islão, o cristianismo e não só. As imagens estavam ligadas ao poder. Eram instrumentos de propaganda. No judaísmo, eram sobretudo os excluídos do poder que as repudiavam. A idolatria não estava ligada, apenas, às imagens. Para o profeta Isaías, Israel cai na idolatria, quando confia mais nos recursos militares do que em Deus (Is 31, 1-3). Por vezes, a iconofobia hebraica foi transgredida. Basta pensar nos frescos, com cenas bíblicas, presentes nas ruínas da sinagoga de Dura Europos do século III. O percurso das imagens provocou lutas sangrentas no interior do cristianismo (726-789). Foram legitimadas no II Concílio de Niceia: Deus tornou-se misteriosamente visível, para os homens, no corpo de Jesus. A veneração das imagens não se dirige a elas, mas a quem elas representam. Distinguiu-se a "veneração" a pessoas santas da "adoração" reservada só a Deus. O islão, considerado a última religião monoteísta, herdou a iconofobia semita. Maomé destruiu os ídolos da Ka"ba e, no Corão, pode ler-se que as estátuas são abominação de Satanás.

Seria ridículo pensar que a idolatria está, apenas, ligada à iconografia. Quando se encara a letra da Bíblia ou do Corão como ditados de Deus, esse fundamentalismo também é idolátrico.

A Igreja ortodoxa e a Igreja católica romana resvalam facilmente para o excesso do visível, para o excesso das imagens. Podem cair, e caem muitas vezes, no trivial mais trivial em nome do concreto. Numa civilização da tirania da imagem, como é a nossa, só existe o que aparece. Daí as tentações com a televisão.

3. O PÚBLICO do domingo passado foi abundante em comentários a diversos aspectos da religião. Destaco, todavia, de Eduardo Cintra Torres, a "Santa televisão" ocupada com a trasladação dos restos mortais da vidente Lúcia para Fátima. Realça que "a importância do evento não pode ser diminuída por se tratar de uma manifestação religiosa. Pelo contrário, a religião tem recuperado por novos caminhos o papel de cimento social nas sociedades contemporâneas ocidentais. Mas daí à unanimidade de toda uma sociedade vai um passo demasiado grande. E aquilo que assistimos no domingo passado constitui um facto de grande relevância não só no aparato televisivo português como na sociedade em geral: os três canais generalistas, representando 3/4 dos espectadores ou mais, transmitiram a mesma cerimónia, muitas vezes com as mesmas imagens, por um período que ocupou mais de nove horas da sua emissão".

É, no entanto, revelador que "os canais alternativos da cabo, satélite e vídeo obtiveram no domingo a segunda melhor audiência do ano. Durante a tarde, esses canais chegaram a ter mais audiência do que qualquer um dos generalistas que transmitia a cerimónia".

Seria importante constituir um grupo de trabalho com sociólogos, antropólogos, psicólogos, peritos em comunicação, pastoralistas, bispos e teólogos, de várias tendências, para analisarem e debaterem o significado de tudo isto na sociedade portuguesa. Que religião é esta? Que alegria traz à vida?

P.S. O documentário do Canal 2 A Fé de cada Um, transmitido na semana passada em torno das imagens de Fátima, pró e contra, seria uma boa peça para esse debate.

 
(1) O Peregrino e o Convertido. A Religião em Movimento, Lisboa, Gradiva, 2005, págs. 26-27.