Ressurreição e evolução

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ................................Público, Lisboa,22.04.2006
Não devemos avaliar a saúde da Igreja a partir dos seus triunfos ou dos seus fracassos. (...) muitas vezes, os êxitos têm dentro um veneno mortal e os fracassos obrigam a perguntar: não teremos cedido, como os primeiros discípulos de Jesus, às ambições do poder económico, político e religioso?

1.Desde há vários anos que aparece sempre alguma coisa para pôr em xeque a celebração cristã da Páscoa. Este ano, essa função coube à encenação internacional da redescoberta do "Evangelho de Judas". Para a verdade histórica, vale tanto como a descoberta da corda em que ele se enforcou! Foi perdida uma bela oportunidade para estudar as influências do complexo movimento gnóstico no cristianismo dos primeiros séculos.

O movimento cristão terá sempre de se confrontar com as tentativas de salvação à custa da negação do mundo, da existência carnal, como se esta fosse a nossa desgraça e não a nossa condição natural e divina, o lugar da esperança e da traição. Não se salva o mundo fugindo do mundo, como pensam os gnósticos de todos os tempos, mas lutando contra aquilo que o estraga ou impede a sua transfiguração. A proposta cristã não é uma recusa da nossa condição carnal, mas a sua ressurreição no quotidiano, a recriação da esperança. Os discípulos de Jesus, perante o fracasso dos sonhos messiânicos que os moviam, ficaram mais mortos do que o Mestre crucificado. O mais difícil de aceitar não é a ressurreição de Cristo, mas a ressurreição da esperança dos discípulos e o seu poder de contágio até aos dias de hoje.

Não devemos avaliar a saúde da Igreja a partir dos seus triunfos ou dos seus fracassos. Como nos ensina a história de dois mil anos, muitas vezes, os êxitos têm dentro um veneno mortal e os fracassos obrigam a perguntar: não teremos cedido, como os primeiros discípulos de Jesus, às ambições do poder económico, político e religioso?

2. Ainda há poucos anos, a Espanha era o símbolo do catolicismo triunfante. Diz-se, agora, que é um barco a afundar-se. Uns queixam-se do laicismo governamental e outros decalcam a situação da Igreja através da subida e da queda do "franquismo". Os cristãos poderão re-encontrar o verdadeiro caminho se não sufocarem nem as interrogações nem as novas experiências que saltam para fora das alternativas suicidas.

Abandonemos, porém, as nossas visões eurocêntricas da Igreja. No Vietname comunista os seis milhões de católicos testemunham uma vitalidade pujante. A prática religiosa ultrapassa os 90 por cento e não há lugar para acolher todas as vocações sacerdotais e religiosas, com a vantagem de que não pertencem a uma Igreja do poder, mas a uma Igreja vigiada pela polícia que foi passando do martírio, da paixão, para a ressurreição sem triunfalismos. O Burundi é conhecido pelos horrorosos massacres interétnicos de 1993 e por mais de um milhão de deslocados. Em Portugal conhece-se muito pouco a nova "Madre Teresa" africana, Marguerite Barankitse (Maggy), o rosto da caridade inteligente. Pertence à etnia tutsi. Durante o massacre foi tida pelos tutsis como uma traidora e pelos hutus como uma espia. Apesar de tudo e de todos, continua a empenhar-se em dizer "não", pelas palavras e obras, ao ódio fratricida. Lança, de improviso em improviso, as casas da paz e da reconciliação que crescem como um milagre. Neste momento já conta 500 casas shalom. Esta católica militante não é "boazinha". Diz, abertamente, que tem dois parentes doentes: o Burundi e a Igreja. É implacável com os padres: "Já não os suporto mais. Eles excomungam, pregam, dogmatizam, proíbem, mas esquecem que Cristo dizia: "É a Lei que mata." Cristo perdoava, amava os pecadores."

Maggy mostra que ela própria teve muito que perdoar: "Eu vi as mesmas pessoas, que iam no domingo à missa, assassinar sem vergonha os seus irmãos e irmãs. Tive de ir muito fundo, dentro de mim, para poder repetir: "Maggy, Jesus também os ama, mesmo criminosos."" Não poupa as ONG: "Sinto-me muito mal nessas reuniões oficiais e estúpidas, onde se grita, de fato e gravata, diante de buffets sumptuosos e em termos que não percebemos: "Lutemos contra a fome!"" Convidada a ir à América e à Europa, onde se morre por comer de mais, é recebida como uma princesa em hotéis de luxo e ri da sua própria situação: "Há espelhos e torneiras por todo o lado e fico a pensar: "Meu Deus, lançam para o lixo o que podia alimentar todo o meu povo"" (1).

3. Não é só na Ásia ou na África que é preciso viver e sonhar com esperança. Para mil milhões de católicos também há quem aguarde ressurreições no Vaticano. Os caçadores de novidades perdem-se nas insignificâncias. Hans Küng publicou um simpático balanço de um ano de Bento XVI, mas também aponta, de forma implacável, o caminho longo, difícil e urgente que o Papa deve percorrer com toda a Igreja (2).

Na homilia da Vigília Pascal e a mensagem Urbi et Orbi merecem destaque. Na homilia, Bento XVI apresentou a ressurreição como "um salto de qualidade na história da "evolução" e da vida em geral para uma nova vida futura, para um mundo novo que, a começar em Cristo, incessantemente penetra já neste nosso mundo, transforma-o e atrai-o a si". Darwin e Teilhard de Chardin estão, finalmente, vingados.

Na mensagem Urbi et Orbi, não esqueceu as muitas chagas da África (região dos Grandes Lagos, Corno de África, da Costa do Marfim, Uganda, Zimbabwe...). Lembrou a situação desastrosa do Iraque e os que estão envolvidos no conflito da Terra Santa, "convidando todos a um diálogo paciente e perseverante que remova os antigos e novos obstáculos. Que a comunidade internacional - que reafirma o justo direito de Israel a existir em paz - ajude o povo palestiniano a superar as condições precárias em que se encontra, avançando para a constituição de um Estado verdadeiro e próprio". Depois de voltar o olhar para a América Latina, referiu-se "às crises internacionais ligadas ao nuclear, para chegar a um acordo honroso para todos através de negociações sérias e leais". Uma opção tão clara pela via do diálogo e das negociações, quando os donos deste mundo só pensam em guerra, significa a ressurreição dos caminhos da paz.

 
(1) Cf. Henri Tincq, Le Monde (18.04. 2006).
(2) El País (16.04.2006).