O Rapto do Santo 1. Quando começava a dar os parabéns a João César das Neves pelo seu livro, O Rapto do Santo, deparei com o Elogio de Umberto Eco a Tomás de Aquino, no sétimo centenário da sua morte (1974). Ele conhece bem a Idade Média alucinada, mas também o sul da Itália e da Sicília, onde se misturavam o Ocidente e Bizâncio, influências gregas e árabes, os contactos com a grande civilização de Córdoba, Sevilha e Granada, as comunidades judaicas com o seu poder cultural e financeiro. Um mundo tenso, de diferenças e provocações que afectavam os debates entre "razão e fé", na Universidade de Paris, a "nova Atenas". Tomás de Aquino envolveu-se na refrega e foi condenado. |
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BENTO DOMINGUES, O.P. ....................Público, Lisboa, Dezembro de 2006 | |
Para U. Eco, apesar de tudo, a pior desgraça da sua carreira não aconteceu a 7 de Março de 1274, quando morre, aos quarenta e nove anos, a caminho do Concílio de Lion. A desgraça também não lhe veio, três anos depois da morte, quando o arcebispo de Paris, Estêvão Tempier, publicou uma lista de proposições heréticas (duzentas e dezanove) que compreendem a maior parte das teses dos averroístas, vinte das quais, claramente atribuíveis ao angélico doutor, dos senhores de Aquino. Desses actos repressivos, a história faz rapidamente justiça e, mesmo morto, Tomás vencerá a batalha. A desgraça que o arruinou aconteceu em 1323, dois anos depois da morte de Dante – e talvez também um pouco por sua culpa –, isto é, quando o Papa João XXII decidiu canonizá-lo, fazer dele «São Tomás de Aquino». São situações ingratas. É como receber o Prémio Nobel, entrar na Academia de França, ganhar o Óscar. Passa-se a ser como a Gioconda: um clichê. É o momento em que «um grande incendiário é nomeado bombeiro». Termina o seu Elogio paradoxal com a pergunta: «Que faria Tomás de Aquino, se vivesse hoje?». Confrontar-se-ia, certamente, com as grandes questões, autores e teorias do nosso tempo. Mudaria o seu método argumentativo, tornando-o menos harmonioso e conciliador. Dar-se-ia conta de que não podia elaborar um sistema definitivo, perfeito como uma obra de arquitectura, mas uma espécie de sistema móvel, uma Suma de folhas substituíveis. Na sua enciclopédia das ciências, seria acentuado o sentido da historicidade e do provisório. U. Eco não sabe o que, depois, lhe iria acontecer, mas afirma: «Sei, de certeza, que participaria nas suas comemorações, apenas, para recordar que não se trata de decidir como usar ainda aquilo que ele pensou, mas de pensar outra coisa. Ou, no máximo, de aprender com ele como se faz para pensar com limpeza, como homem do seu tempo. Depois disto, não queria estar na sua pele» (1). 2. São palavras de 1974. Tomás de Aquino parece condenado, ao longo do tempo, a suportar o repúdio primário, o elogio incondicional ou o esquecimento. Desde os finais do século XIX, a hierarquia da Igreja recorreu à sua invocação, para enfrentar as dificuldades culturais com que se debatia. Por mais ambígua que fosse a intenção, as recomendações de Roma não foram inúteis. A obra imensa deste grande intelectual foi re-editada, traduzida e comentada. Os mais conservadores julgavam que lhes servia para imobilizar a Igreja perante um mundo que não procuravam compreender, mas condenar. Os mais audazes estudaram o seu pensamento, de forma histórica, e confrontaram-no com os desafios do século XX. A sorte destes foi a suspeita e a condenação, mas foi também o caminho longo para a revolução do Vaticano II. Como disse Paulo VI, «é a primeira vez que um concílio ecuménico recomenda um teólogo e este é S. Tomás». Em Portugal, a restauração neo-tomista não teve grande relevo nem grandes frutos e a redescoberta de S. Tomás também não foi muito inspiradora. O catolicismo português, dos finais do século XIX e do século XX, não tinha grandes e persistentes preocupações intelectuais, fossem elas conservadoras ou progressistas. 3. Depois desta digressão, resta-me dar os parabéns a João César das Neves pelo seu belo livro(2). Procurei ser surpreendido, através de um percurso cuidadoso, por algo que não encontrasse nas muitas obras que conheço e frequento acerca do espantoso e amado Tomás de Aquino. Temo que algumas pessoas despachem a obra com a conhecida anedota: este livro tem coisas boas e coisas originais; as boas não são originais e as originais não são boas. É evidente que, neste caso, as coisas boas não podem ser originais: trata-se de uma selecção de textos e pedaços de vida de S. Tomás. Para a maioria dos leitores – e desejo que sejam muitos –, serão, todavia, absolutamente inéditos. A selecção, a organização e o método escolhidos são uma óptima surpresa. Realiza a ambição: «fazer uma apresentação da figura do grande S. Tomás de Aquino. Os episódios da sua vida, os contornos da sua obra e a actualidade do seu pensamento, junto com o colorido da época em que viveu, são brevemente descritos e analisados. Sempre através dos olhos de um grupo de jovens que encontram essa personagem fascinante, por quem se deixam interpelar aventurosamente». É certo que, no primeiro contacto, estranhei a falta de referências bibliográficas. Nem sequer constava a obra iniciática de J. P. Torrell (3), na qual, Bento XVI tenta descobrir S. Tomás de Aquino. Mas vem tudo na "Nota Explicativa": «O site www.raptussancti.net, personagem principal deste livro, infelizmente não existe. Não há ainda nenhum local onde, em português, se possam ler as obras completas do grande teólogo, junto com as suas biografias e comentários ao seu trabalho. No entanto, nesse endereço da net pode encontrar-se um site muito mais pobre, que serve de apoio a este livro. Nele se inclui algum material anexo que facilita e aprofunda o acesso à vida e obra do grande doutor de Aquino. Entre outras coisas, encontram-se aí todas as citações das obras de S. Tomás incluídas neste romance». Talvez não seja um grande romance, mas é um belo livro e muito didáctico. |
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(1) Viagem na Irrealidade Quotidiana, Lisboa, Difel, 1986, pp. 251-259. (2) João César das Neves, O Rapto do Santo. www.raptussancti.net, Lisboa, Verbo, 2006. Jean-Pierre Torrell. OP, Iniciação a Santo Tomás de Aquino. Sua Pessoa e Obra , São Paulo, Loyola, 1999. |
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