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BENTO DOMINGUES, O.P. .........................Público, Lisboa, Junho de 2006 | |
O Pentecostes é a festa de todos os sonhos, do mundo inacabado e do que há por cumprir no melhor das religiões. É a festa de todas fronteiras que é preciso transpor: físicas, culturais e religiosas
1. “Pentecostes” é uma palavra pouco poética. Vem do grego, pentêcostê, e passou a significar o quinquagésimo dia depois da Páscoa. Resumindo e simplificando muito, pode-se dizer o seguinte: no Antigo Testamento, havia a festa das Colheitas, tempo de alegria e de acção de graças. Eram oferecidas a Deus as primícias do que a terra e o trabalho humano tinham produzido. Na Páscoa, os camponeses ofereciam, nos seus santuários locais, as primeiras espigas de aveia e cevada em homenagem aos deuses protectores da fertilidade dos campos e com elas faziam o pão ázimo. Cinquenta dias depois, na colheita do trigo, ofereciam as primeiras espigas: era a festa do Pentecostes. O antigo Israel aproveitou estas festas agrícolas. Ao interpretar a sua história, colocou-as em pontos destacados da sua epopeia: a Páscoa, no momento da saída do Egipto, como festa de libertação; o Pentecostes, como celebração da entrega da Lei no Sinai. Tudo poderia continuar assim pelos séculos dos séculos. A comunidade cristã, constituída por judeus – que viram em Jesus um estranho messias –, teimava numa velha esperança, mesmo depois do “desastre” da crucifixão: “Senhor, é agora que vais restaurar o reino de Israel?” Jesus, um bocado desesperado com a cegueira dos discípulos – não desistiam de sonhar com “tachos” políticos –, mandou-os pura e simplesmente passear para muito mais longe do que eles pensavam, “até aos confins do mundo”. Sabendo bem que, pelo próprio pé, não sairiam dali, prometeu-lhes algo sobre o qual não manifestaram nenhum interesse: o Espírito Santo! (Act 1, 6-8) Na continuação desta narrativa, precisamente no dia da Lei no Sinai, aconteceu o prometido: a comunidade de Cristo Ressuscitado, comunidade de homens e mulheres, foi sacudida até aos alicerces por forte rajada de vento: “Viram, então, aparecer uma espécie de línguas de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que se exprimissem. Residiam em Jerusalém judeus piedosos, procedentes de todas as nações que há debaixo do céu. Ao ouvir aquele ruído, a multidão reuniu-se e ficou muito admirada, pois cada qual os ouvia falar na sua própria língua. Atónitos e maravilhados, diziam: ‘Não são todos galileus os que estão a falar? Então, como é que os ouve cada um de nós falar na sua própria língua? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia, vizinha de Cirene, colonos de Roma, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes, ouvimo-los proclamar nas nossas línguas as maravilhas de Deus’” (Act 2, 1-11). Estamos, apenas, no começo das aventuras simbólicas do Espírito imprevisível. O que Ele tem a dizer às Igrejas (cf. Ap 2 - 3) não está fixado de uma vez para sempre. Não se trata de universalizar a Lei do Sinai, a Lei de Jerusalém, mas de descobrir, em todos os povos, o Espírito de Deus, no qual “realmente vivemos, nos movemos e existimos” (Act 17, 28). Este texto diz, de uma forma muito directa, que entre as línguas e culturas humanas não há umas mais dignas de Deus do que outras. O cristianismo nunca poderá ter nenhuma língua sagrada. É em palavras humanas de todos os povos que se pode escutar o sentido que Deus dá à nossa e sua história. A Europa, com vocação para o acolhimento, a diversidade e o pluralismo, já só pensa em vigiar as suas fronteiras. Na era “pós-cristã”, além dos medos e das ameaças, vive na indiferença e num ambíguo retorno do religioso: uns desejam realçar a componente cristã da identidade da Europa e empenham-se na “Nova Evangelização”; outros lutam para que a questão religiosa saia do espaço público e se remeta para o “santuário” da consciência individual. Se uns desejariam voltar ao quadro pré-moderno da vida social, no qual a comunidade religiosa e a comunidade civil se juntavam em torno do campanário, outros procuram mostrar que a comunidade religiosa é, apenas, uma parte da comunidade civil. Já não vivemos num quadro religioso, mas num mundo secular, “como se Deus não existisse”, no dizer de É. Poulat. Para o cardeal Cario Maria Martini, a condição da Igreja no mundo actual é, em muitos aspectos, o que Cristo chamou: pequeno rebanho, uma semente minúscula, um punhado de fermento. Os meios de comunicação social deixam-na à margem, interessando-se, apenas, pelos aspectos periféricos, folclóricos, ou por algum escândalo eclesiástico. O Pentecostes é a festa de que gosto. É a festa de todos os sonhos, do mundo inacabado e do que há por cumprir no melhor das religiões. É a festa de todas fronteiras que é preciso transpor: físicas, culturais e religiosas. Não para dominar, mas para descobrir que todos os seres humanos existem para cuidar uns dos outros, para responder à pergunta de Deus: “Que fizeste do teu irmão.” É a festa do primeiro e do último sonho da humanidade. |
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