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BENTO DOMINGUES, O.P. .................................Público, Lisboa, 17.07.2006 | |
1. Que foi o Papa fazer a Valência (Espanha)? Foi ao encerramento do "V Encontro Mundial das Famílias". Terá apresentado alguma proposta nova do magistério da Igreja para superar a chamada "crise da família"? A tese que venceu nos meios de comunicação foi esta: o Papa foi defender a família tradicional.
Em 1995, Norbert Mette, professor de Teologia Prática, na Universidade de Paderborn, e membro da direcção da revista internacional Concilium, casado e pai de três filhos, ao estudar "a família nas declarações doutrinais do magistério da Igreja", e referindo-se, nomeadamente, à Familiaris Consortio de João Paulo II e à sua Carta às famílias de 1994, aceita o diagnóstico papal: «Ninguém contesta que muitas das tendências enumeradas pelo Papa realmente acontecem: difusão de uma atitude de vida consumista-hedonista, associada a uma mentalidade materialista-utilitarista, declínio da capacidade para a vida comunitária e da disposição para a solidariedade, degradação da sexualidade (e, neste contexto, sobretudo da mulher) a objecto de prazer, etc.».
Mas acrescenta: querer deduzir daí uma decadência da família é um sofisma. Se aceitarmos os resultados da sociologia, poderemos verificar, precisamente, a sua notável estabilidade. Por outro lado, a ocorrência de formas novas e alternativas de família não é, de forma alguma, tão abundante como o permitiria imaginar uma opinião amplamente difundida. O que claramente aconteceu foi uma profunda transformação da estrutura e da função da família. Enquanto esta transformação não for percebida – pelo menos em princípio, como o fez o Vaticano II – e enquanto a visão ficar presa a uma imagem familiar tradicionalista, não é de admirar que as declarações oficiais da Igreja sejam rejeitadas como incapazes de enxergar a realidade e, por isso, sem grande utilidade (1).
Em suma: não seria a família que estaria em crise, mas alguns dos seus modelos e parte das funções que desempenhou na história humana. No entanto, na vizinha Espanha, e não só, surgem, em catadupa, coisas que não lembram ao diabo. O contencioso do episcopado espanhol com o governo de Luiz Zapatero encontrou, nesse campo, novos motivos de afrontamento.
Foi neste contexto que Bento XVI partiu para Valência. Tornou-se inevitável perguntar: a ida do Papa beneficiou a política dos bispos ou a do governo?
O ex-porta-voz do Vaticano, Navarro-Valls, encarregou-se de ser o mais desagradável possível com Zapatero. Bento XVI não escondeu os desacordos com o governo espanhol, nomeadamente, no tocante ao casamento e ao direito de adopção por parte de homossexuais: "A Igreja católica não pode aceitar determinadas coisas, mas não nos centremos nos elementos negativos, porque vejo muitas famílias unidas e devemos ressaltar esta realidade".
E foi o que fez. Reafirmou a doutrina católica oficial sobre a família e deixou de lado o contencioso dos bispos espanhóis com o governo. Estaremos perante uma mudança de orientação do Vaticano?
2. João Paulo II percorreu o mundo como se estivesse sempre na sua católica Polónia, embora dominada por um regime comunista. As suas múltiplas viagens, a sedução das multidões e, sobretudo, dos jovens, as exortações à "Nova Evangelização", os encontros com personalidades políticas, pareciam ter, como horizonte, uma nova Cristandade que exigia uma palavra decisiva na política internacional e no interior de cada país. Bento XVI vem, pelo contrário, de uma área cultural que protagonizou a divisão religiosa do Ocidente, onde católicos e protestantes são tratados em pé de igualdade. Parece não acreditar muito no alcance das grandes concentrações de massas e prefere, como o mostrou no último Pentecostes, a reunião de movimentos fervorosos que ele pode, facilmente, controlar. Sabe que se situam no âmbito de uma espiritualidade em torno do Papa e aos quais pode exigir uma obediência indiscutida. Enquadraram, aliás, a concentração de Valência com destaque para o chamado "caminho neocatecumenal" fundado, em 1964, pelo espanhol Kiko Argüello e Carmen Hernández.
Diz-se que os bispos mais conservadores ouviram do ex-porta-voz do Vaticano o que gostariam de ter ouvido do Papa. Mas, de facto, o Encontro era com as famílias católicas, vindas de muitas partes do mundo que pouco ou nada tinham a ver com as relações crispadas entre a política do governo e as posições dos bispos espanhóis. Zapatero recebeu cordialmente o chefe de Estado do Vaticano e Bento XVI retribuiu sem se comprometer com as questões internas da política espanhola.
3. Acerca da família, o Papa insistiu no que já se esperava que dissesse. A grande questão é outra: que disseram as famílias ao Papa? Estavam elas mandatadas para o informar e interpelar acerca das questões com que se debatem, a nível mundial? Qual é a reflexão teológica, pastoral e espiritual que fazem em cada país, em cada diocese e em cada movimento? Será que, no âmbito católico, só há espaço para pensar e exprimir a teologia que é elaborada a partir do magistério e dos seus documentos? No caso presente, o sujeito da teologia e das orientações pastorais e espirituais deveriam ser as próprias famílias. É a natureza do sacramento do matrimónio que o exige.
Laura Ferreira dos Santos, docente da Universidade do Minho, católica, casada há 24 anos com um agnóstico, sem filhos, ao pretender dar um recado aos bispos portugueses, imaginou uma parábola de desgraças que ultrapassa as nossas fronteiras: «O meu desejo. Gostava muito que um ou vários dos nossos "dons" bispos casasse, tivesse até um casamento impossível que levasse ao divórcio, que o casal se enchesse de filhos com o mau funcionamento do método das temperaturas, que uma filha "saísse" lésbica, um filho gay e outro transexual, que uma filha hetero abortasse e fosse encarcerada e que uma outra se divorciasse e o pai das crianças não pagasse a pensão. Se, no fim disto tudo, o "dom" anterior não tivesse mudado, ou pelo menos flexibilizado, a sua opinião sobre a família, proporia que fosse estudado pelo António Damásio» ( público, 13.07.06).
Se deixarem as mulheres falar, terão muito que ouvir! |
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(1) Norbert Mette, A Família nas declarações doutrinais do Magistério da Igreja , in Concilium 260 (1995), pp. 95-107. | |