O HUMOR SUMIU-SE

 

 

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ................................Público, Lisboa, 12.02.2006

A ideia e a própria palavra Deus estão, na maior parte dos casos, ligadas à angústia, ao drama, à culpabilidade, ao castigo, ao sofrimento, à morte, ao juízo final.

1. Se houvesse, nas religiões, mais humoristas do que apologetas e fanáticos, talvez elas pudessem manifestar melhor o humor de Deus - mesmo no meio das nossas loucuras - sem nos humilhar e sem O tornar ridículo. S. João escreveu textos de dura controvérsia e cartas bem polémicas e eram "para que a nossa alegria fosse completa"...

Ao percorrer as bibliotecas das religiões, podemos encontrar histórias hilariantes, mas o conjunto é bastante pesado. Gostava muito daqueles pregadores que perguntavam a quem os convidava: "Quer que faça rir ou chorar?"

Claude Sales, que trabalhou em vários jornais franceses, tentou ouvir as gargalhadas de Deus perante a maldade e sobretudo a estupidez que, desde sempre, acompanharam a invocação do seu nome (1).

Se o riso é próprio do homem, que se passará com Deus? Já por si, esta interrogação parece blasfema. Deus não ri e é pecado rir de Deus: "Graças a Deus muitas, graças com Deus poucas." No entanto, nunca Lhe faltaram ocasiões para se rir. Mas por uma espécie de mistura de respeito, de decência e de medo é suposto que Deus ou Yavé, ou Alá, ou o Absoluto ou o Eterno ou o completamente Outro... é alguém sisudo, grave e ameaçador. Rir é que não ri. Seja crente ou descrente, nenhum pintor ou escultor ousou imaginá-lo nesse despropósito.

A ideia e a própria palavra Deus estão, na maior parte dos casos, ligadas à angústia, ao drama, à culpabilidade, ao castigo, ao sofrimento, à morte, ao juízo final. A sabedoria popular, pessimista e conservadora, diz que a morte aproxima de Deus. Com a idade, o mundano faz-se eremita; o desfrutador louva a austeridade; o libertino, a castidade; e o rico, a generosidade; os espíritos fortes sentem algumas fraquezas; e o céptico que duvidava de tudo, excepto da sua pessoa, começa a desconfiar de si próprio. Aquele que acredita no céu e aquele que não crê nem em Deus nem no Diabo fazem juntos o último bocado de caminho... Diante desta onda de fraquezas ou conversões, tão repentinas como radicais, tão últimas como tenebrosas, se Deus não desata a rir, perdi o meu latim, diz Claude Sales.

E acrescenta: clérigos de todas as religiões, papas e bispos, rabinos, imãs, feiticeiros e mágicos de todo o género, mediadores entre a terra e as estrelas, funcionários da eternidade, podeis repetir que o Deus que vós revelais ou adorais é um Deus de vida, ele é sentido como um Deus de morte. Mesmo o Deus de amor dos cristãos parece ter um amor triste. Como se o esplendor do mundo e dos homens lhe fosse estranho e como se a felicidade, o prazer e o riso estivessem excluídos do célebre vale de lágrimas.

Que a vida humana seja, por vezes, trágica, sabe-o cada um por experiência e não faltam testemunhos de que a história esteve sempre semeada de horrores: cortejos de mortos e feridos, crianças assassinadas, torturas, genocídios e guerras sem fim. "Esta história", diz Deus, "obrigar-me-ia a duvidar de mim próprio se, ao mesmo tempo, não verificasse que, apesar do horror e da crueldade, os homens continuam a viver e a dar a vida com esta poderosa convicção de que nada está definitivamente perdido, com este irreprimível desejo de ser, de realizar e de rir como um desafio contra todos os desesperos."

E já pusemos Deus a falar, quando desejávamos ouvi-lo rir. O que Ele nos garante - olhando para todas as religiões da terra em todos os tempos e lugares - é que não fez contrato de exclusividade com nenhuma. E que os judeus, os cristãos e os muçulmanos não se zanguem com Ele por causa disso.

2. Pelas minhas contas, Deus não cabe em nenhum credo, em nenhuma religião e também não pode ser apanhado pelas nossas brincadeiras nem sequer pelos nossos pecados que nos ofendem a nós, mas não o atingem directamente a Ele.

Se todos pudessem rir com a religião ou o ateísmo dos outros sem os ofender, estaríamos num céu bem engraçado. Mas não estamos. No Verão de 2005, Kaare Bluitgen, polemista dinamarquês, escreveu um livro ilustrado sobre a vida de Maomé, destinado às crianças e à juventude, apresentando o profeta como um pedófilo e um criminoso de guerra. O jornal Jyllands-Posten convidou 40 caricaturistas a fazerem cartoons sobre Maomé e 12 aceitaram. O editorial que os acompanhava sublinhou que, numa sociedade laica, os muçulmanos devem aprender que a liberdade de expressão implica: "desafiar, blasfemar e humilhar" o islão.

O jornal não infringiu nenhuma lei dinamarquesa. No entanto, onze embaixadores árabes pediram um encontro com o primeiro-ministro. Queriam que aplicasse sanções ao jornal e ele nem os recebeu. O jornal é de direita e o governo, para conseguir a maioria parlamentar, depende de um partido de extrema-direita. Segundo uma entrevista de Ana Navarro Pedro (PÚBLICO, 03-02-06) ao director do Politiken - um diário de referência - os seus colegas erraram por querem desafiar, blasfemar e humilhar. O governo, no plano diplomático, também errou. Devia ter recebido os embaixadores árabes e explicar-lhes que as opiniões de um jornal não reflectem as opiniões do povo e que o governo não interfere nem sanciona a liberdade de expressão. E a crise poderia ter morrido ali. Não foi o que aconteceu. Os fundamentalistas islâmicos tiveram, de bandeja, mais um pretexto para incendiar os países muçulmanos contra o Ocidente e os meios de informação, pasto abundante e barato.

E agora, o humor sumiu-se e surgem rostos sujos de ódio. De um e de outro lado da barricada multiplicam-se as declarações, as explicações, as análises, as diatribes e a violência. A violência simbólica não é menos demolidora do que a violência física. Estaremos ou não envolvidos num "choque de civilizações"? A situação é paradoxal. Em nome da defesa da democracia e da liberdade, o Ocidente despeja bombas sobre o "eixo do mal" e, em nome da segurança, abdica da sua própria liberdade. Em nome da defesa da religião, os muçulmanos fanáticos tornam a religião de milhões de crentes ridícula aos olhos do Ocidente.

 
(1) Claude Sales, Les Rires de Dieu, Paris, Seuil, 2003