AGRADECIDOS
EM NOME DA PAZ

 

Os católicos devem estar agradecidos por aquilo que os papas, do século XX, fizeram pela paz, a começar por Bento XV, que enviou um apelo, a 1 de Agosto de 1917, aos chefes dos povos beligerantes, propondo-lhes que acabassem com o "inútil massacre" e se dispusessem a construir uma paz durável.

BENTO DOMINGUES, O.P. ...............................Público, Lisboa, 31.12.2006

Os católicos nunca estarão demasiado agradecidos a João XXIII, não só pelo que ele era para todos - um irmão -, mas pelo milagre do Concílio Vaticano II (1962-1965). Este devia ser explicado às crianças, aos adolescentes e aos jovens de cada geração. Não se nasce cristão e tornar-se católico, isto é, um coração cada vez mais universal, é tarefa de toda a vida. Com a sua encíclica Pacem in Terris, fez uma convocatória, a "todos os homens de boa vontade" (1963), com uma perspicácia incomparável na leitura dos "sinais dos tempos", em plena guerra fria.

Os católicos devem estar agradecidos a Paulo VI, que se deslocou à ONU (1965) e se apresentou assim: "Aquele que vos fala é um homem como vós e vosso irmão, e mesmo um dos mais pequenos entre vós, que representais Estados soberanos, enquanto ele não se encontra investido - se quereis considerar-nos sob este ponto de vista - senão de uma minúscula e quase simbólica soberania temporal: a mínima que se torna necessária, para poder exercer livremente a sua missão espiritual e assegurar àqueles que, com ele têm de lidar, que não se encontra dependente de nenhuma das soberanias deste mundo. Não tem qualquer poder temporal, qualquer ambição de entrar em competição convosco. De facto, nós nada temos a pedir, nenhuma exigência a fazer, mas apenas um desejo a formular, uma permissão a solicitar: a de vos poder servir naquilo que cabe no âmbito da nossa competência, com humildade e amor (...). A nossa mensagem quer ser, antes de mais, uma ratificação moral e solene desta nobre instituição. Esta mensagem vem da nossa experiência histórica. É como "perito em humanidade" que trazemos a esta organização o sufrágio dos nossos últimos predecessores, o de todo o episcopado católico e o nosso, convencidos, como estamos, de que esta organização representa o caminho obrigatório da civilização moderna e da paz mundial."

Paulo VI criou algo de novo - que hoje celebramos - com estas palavras: "Dirigimo-nos a todos os homens de boa vontade para os exortar a celebrar o Dia Mundial da Paz, no mundo inteiro, o primeiro dia do ano civil, 1 de Janeiro de 1968. Seria nosso desejo que, doravante, em cada ano, esta celebração se repita como um desejo e uma promessa, na abertura do calendário que mede e descreve o caminho da vida humana no tempo."

Os católicos deviam estar imensamente agradecidos a João Paulo II por ter multiplicado os pedidos de perdão por todos os males que os membros da Igreja católica causaram ao longo da sua história. Isto não significa que as imagens do passado estejam apagadas. O arrependimento e o firme propósito de emenda não tornaram os membros da Igreja nem infalíveis nem sem pecado.
Devem-lhe estar, especialmente, agradecidos por ter promovido, em Assis, pela primeira vez na história, com os dirigentes das principais tradições religiosas, um encontro de oração pela paz (1986). A oração é a marca transcendente da religião, a melhor disposição para acolher a paz de Deus e para dar a todos o abraço da paz.

Os católicos devem manifestar, a Bento XVI, a sua alegria, porque ele soube vencer as suas inclinações e ideias privadas de teólogo e o seu gosto pela polémica - presente ainda na aula de Ratisbona - para se colocar, na viagem à Turquia, ao serviço do seu ministério de diálogo ecuménico, inter-religioso, ao serviço da paz. Em vez de se fechar, abriu-se às outras Igrejas cristãs e ao mundo muçulmano.

Hoje, respondendo ao já evocado desafio de Paulo VI, entregou uma mensagem, A Pessoa Humana, Coração da Paz, a todos os homens e mulheres de boa vontade. É um texto que marca uma nova etapa na reflexão católica. É um discurso diferente do de Kofi Annan. As funções e as respectivas gramáticas sobre as questões do nosso tempo não são as mesmas.

Bento XVI faz um discurso teológico (in nomine Dei) e o secretário-geral da ONU fala da paz em nome das nações. E assim é que está bem. Uma política, seja ela qual for, só pode invocar o nome de Deus em vão e uma Igreja que se serve do poder político desnatura esse poder e atraiçoa-se a si mesma.

A concepção da pessoa humana a que se refere é uma concepção teológica. Não fala deste tema a partir das ciências humanas, a partir apenas do exercício da razão, mas a partir do conhecimento que nasce da fé. O Papa pretende colocar os cristãos à altura de responder à exigência levantada por S. Pedro: "Estai sempre prontos a dar razão da vossa esperança, a quem vo-la pedir, com mansidão e respeito" (I Pd 3, 15).

Evoca as palavras de João Paulo II, na Assembleia Geral das Nações Unidas, de 5 de Outubro de 1995: "Não vivemos num mundo irracional ou sem sentido, mas (...) existe uma lógica moral que ilumina a existência humana e torna possível o diálogo entre os homens e os povos." Mas Bento XVI acrescenta: "A "gramática" transcendente, ou seja, o conjunto de regras de acção individual e do recíproco relacionamento entre as pessoas, de acordo com a justiça e a solidariedade, está inscrita nas consciências, nas quais se reflecte o sábio projecto de Deus. Como recentemente quis reafirmar, nós cremos que, na origem, está o Verbo eterno, a razão e não a irracionalidade."

Este Papa assumiu a tarefa de relembrar o que há de mais fundamental: é no respeito e no serviço do ser humano que se mostra a autenticidade da fé em Deus. Por isso, "uma guerra em nome de Deus jamais é aceitável. Quando uma certa concepção de Deus está na origem de actos criminosos, é sinal de que tal concepção já se transformou em ideologia".
Daqui devem ser tiradas consequências práticas: na liturgia cristã, devem ser abolidas as referências bíblicas que põem na boca de Deus o incitamento de um povo ao ódio e à guerra aos outros povos. É uma questão de decência e de higiene. Um bom ano para a cultura e ecologia da paz!