NÓS TAMBÉM SOMOS IGREJA

 

1. No passado dia 19, a Assembleia da República formulou a proposta de realização de um referendo, nos seguintes termos: «Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?».

BENTO DOMINGUES, O.P. .....................Público, Lisboa, Outubro de 2006

Nesse mesmo dia, D. José da Cruz Policarpo, Cardeal Patriarca de Lisboa, queixou-se, através de um comunicado de ter sido mal compreendido: «As minhas respostas à comunicação social, que me interpelou sobre a hipótese de um novo referendo sobre o aborto, foram incorrectamente utilizadas por alguns meios de comunicação e mesmo por forças políticas e parecem ter gerado confusão e mesmo indignação em algumas pessoas».

Se analisasse, ponto por ponto, este comunicado, correria também eu o risco de o interpretar mal, dado o espaço de que disponho.

Destaco e transcrevo o n.º 3 desse texto importante que, ao procurar desfazer alguns equívocos, talvez não escape a novas ambiguidades. Escreve o Patriarca: «À pergunta se a Igreja se iria empenhar nesta campanha, comecei por clarificar o sentido em que usavam a palavra "Igreja", se referida a todos os fiéis, se apenas aos Bispos. Isto porque, muito frequentemente, os jornalistas quando falam da Igreja se referem só aos Bispos e Sacerdotes. Esclarecida esta questão, aproveitei para exprimir aquilo que penso ser o papel complementar dos leigos e da Hierarquia, numa possível campanha a preparar o referendo. Devo dizer, agora, para clarificar o meu pensamento, que essa possível campanha deveria ser sobretudo um período de esclarecimento das consciências. Mas porque a proposta de leis liberalizantes da prática do aborto se tornou numa causa partidária, a campanha pode cair na linguagem e nos métodos, numa vulgar campanha política.

«Fique claro que todos os membros da Igreja e todos os que defendem a vida são chamados a participar nesse debate esclarecedor das consciências. Compete aos leigos organizar e dinamizar uma campanha, no concreto da sua metodologia. O papel dos pastores é apoiar, e iluminar as consciências com a proclamação da doutrina da Igreja, anunciando o evangelho da Vida. Aos Sacerdotes da nossa Diocese eu peço que se empenhem nesta proclamação da doutrina da Igreja sobre a vida, mas que saibam sabiamente marcar a diferença entre o seu ministério de anunciadores da verdade, e as acções de campanha, necessárias e legítimas no seu lugar próprio. Mas os leigos poderão contar com todo o nosso apoio nesta luta por uma Lei que respeite a vida».

2. Estas opções pastorais dependem de uma convicção: «A doutrina da Igreja, sobre esta matéria, não mudou e nunca mudará. De facto, desde o seu início, a Igreja condenou o aborto porque considera que, desde o primeiro momento da concepção, existe um ser humano, com toda a sua dignidade, com direito a existir e a ser protegido».  

Tanto em relação ao comunicado de D. José Policarpo como em relação à Nota Pastoral do Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa, eu preferia menos evidências do ponto de vista histórico, doutrinal e pastoral. Para abordar uma questão de tantas faces e implicações, seria muito mais interessante promover um congresso ou outras iniciativas que reunam historiadores, cientistas, filósofos, teólogos e pastoralistas de várias tendências, abertos a crentes e a não crentes, que deixassem a Igreja ser Igreja e não a reduzissem, no imaginário colectivo, a mero apoio ou adversária de grupos dependentes de partidos políticos ou correntes ideológicas.

3. É importante que o Patriarca tenha sublinhado que a Igreja não são apenas os Bispos e os Padres. Os leigos também são Igreja. Os Bispos e os Padres, enquanto tais, são, em termos cristãos, os criados dos leigos, isto é, os servos do povo de Deus. Está cunhada a expressão de Santo Agostinho: «Para vós sou bispo, convosco sou cristão». O próprio Papa assina sempre como «servo dos servos de Deus».

Ainda no passado Domingo, os que foram à Missa ouviram a história espantosa das razões do desentendimento de Jesus com os seus discípulos. Estes encaravam a sua vocação como uma carreira político-religiosa. Era essa busca do poder que os impedia de perceber a mensagem do Mestre. Jesus apresentou-se para servir e dar a vida por todos. Eles seguiam-no para conseguir um lugar de mando, quando o Messias tomasse o poder. Mas Jesus foi muito claro: «quem entre vós quiser tornar-se grande, será vosso servo, e quem quiser entre vós ser o primeiro, será escravo de todos» (Mc 10, 35-45).

Não basta que se diga que a Igreja não são apenas os Bispos e se declare que os leigos também são Igreja. É um primeiro passo para a sua "democratização". A Igreja é, toda ela, um "nós". Não é, porém, um "nós" monolítico dos Bispos, do Papa e dos Padres, frente a um outro "nós" monolítico dos leigos. Há muitos carismas, serviços e funções no seio do povo cristão. E, por isso, os leigos não são a tropa da hierarquia. A luz da consciência cristã não está só nos Bispos e nos Padres. A sensibilidade cristã dos leigos também é plural: pertençam ou não a vários grupos e movimentos com caminhadas e espiritualidades muito diversas. Nada nem ninguém pode substituir a consciência de cada um. S. Tomás de Aquino chegou ao ponto de dizer: crer em Cristo é um bem. Mas se aparecer à consciência como um mal, esta não o pode aceitar sem pecar (S. Teológica, I-II, 19, 5). Porquê? Porque contraria o que há de mais decisivo em cada pessoa, a sua consciência, embora cada um também deva ser responsável pela consciência que tem.

Pertence à Igreja, a toda a Igreja, em todas as suas expressões, sensibilidades e movimentos, ser uma escola de sabedoria e de liberdade para que o amor e a misericórdia não sejam negados a ninguém, desde o começo até ao fim da vida humana. Deve continuar a manifestar-se, na primeira linha, contra a fome, as doenças, as guerras, que dizimam milhões e milhões de vidas humanas. É sobretudo aí que se vê quem é pela cultura da vida e quem é pela cultura da morte. É também aí que a Igreja aparecerá ou não como sinal e instrumento de salvação.