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BENTO DOMINGUES, O.P. .....................Público, Lisboa, Outubro de 2006 | |
Nesse mesmo dia, D. José da Cruz Policarpo, Cardeal Patriarca de Lisboa, queixou-se, através de um comunicado de ter sido mal compreendido: «As minhas respostas à comunicação social, que me interpelou sobre a hipótese de um novo referendo sobre o aborto, foram incorrectamente utilizadas por alguns meios de comunicação e mesmo por forças políticas e parecem ter gerado confusão e mesmo indignação em algumas pessoas». Se analisasse, ponto por ponto, este comunicado, correria também eu o risco de o interpretar mal, dado o espaço de que disponho. Destaco e transcrevo o n.º 3 desse texto importante que, ao procurar desfazer alguns equívocos, talvez não escape a novas ambiguidades. Escreve o Patriarca: «À pergunta se a Igreja se iria empenhar nesta campanha, comecei por clarificar o sentido em que usavam a palavra "Igreja", se referida a todos os fiéis, se apenas aos Bispos. Isto porque, muito frequentemente, os jornalistas quando falam da Igreja se referem só aos Bispos e Sacerdotes. Esclarecida esta questão, aproveitei para exprimir aquilo que penso ser o papel complementar dos leigos e da Hierarquia, numa possível campanha a preparar o referendo. Devo dizer, agora, para clarificar o meu pensamento, que essa possível campanha deveria ser sobretudo um período de esclarecimento das consciências. Mas porque a proposta de leis liberalizantes da prática do aborto se tornou numa causa partidária, a campanha pode cair na linguagem e nos métodos, numa vulgar campanha política. «Fique claro que todos os membros da Igreja e todos os que defendem a vida são chamados a participar nesse debate esclarecedor das consciências. Compete aos leigos organizar e dinamizar uma campanha, no concreto da sua metodologia. O papel dos pastores é apoiar, e iluminar as consciências com a proclamação da doutrina da Igreja, anunciando o evangelho da Vida. Aos Sacerdotes da nossa Diocese eu peço que se empenhem nesta proclamação da doutrina da Igreja sobre a vida, mas que saibam sabiamente marcar a diferença entre o seu ministério de anunciadores da verdade, e as acções de campanha, necessárias e legítimas no seu lugar próprio. Mas os leigos poderão contar com todo o nosso apoio nesta luta por uma Lei que respeite a vida». 2. Estas opções pastorais dependem de uma convicção: «A doutrina da Igreja, sobre esta matéria, não mudou e nunca mudará. De facto, desde o seu início, a Igreja condenou o aborto porque considera que, desde o primeiro momento da concepção, existe um ser humano, com toda a sua dignidade, com direito a existir e a ser protegido». Tanto em relação ao comunicado de D. José Policarpo como em relação à Nota Pastoral do Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa, eu preferia menos evidências do ponto de vista histórico, doutrinal e pastoral. Para abordar uma questão de tantas faces e implicações, seria muito mais interessante promover um congresso ou outras iniciativas que reunam historiadores, cientistas, filósofos, teólogos e pastoralistas de várias tendências, abertos a crentes e a não crentes, que deixassem a Igreja ser Igreja e não a reduzissem, no imaginário colectivo, a mero apoio ou adversária de grupos dependentes de partidos políticos ou correntes ideológicas. 3. É importante que o Patriarca tenha sublinhado que a Igreja não são apenas os Bispos e os Padres. Os leigos também são Igreja. Os Bispos e os Padres, enquanto tais, são, em termos cristãos, os criados dos leigos, isto é, os servos do povo de Deus. Está cunhada a expressão de Santo Agostinho: «Para vós sou bispo, convosco sou cristão». O próprio Papa assina sempre como «servo dos servos de Deus». Ainda no passado Domingo, os que foram à Missa ouviram a história espantosa das razões do desentendimento de Jesus com os seus discípulos. Estes encaravam a sua vocação como uma carreira político-religiosa. Era essa busca do poder que os impedia de perceber a mensagem do Mestre. Jesus apresentou-se para servir e dar a vida por todos. Eles seguiam-no para conseguir um lugar de mando, quando o Messias tomasse o poder. Mas Jesus foi muito claro: «quem entre vós quiser tornar-se grande, será vosso servo, e quem quiser entre vós ser o primeiro, será escravo de todos» (Mc 10, 35-45). Não basta que se diga que a Igreja não são apenas os Bispos e se declare que os leigos também são Igreja. É um primeiro passo para a sua "democratização". A Igreja é, toda ela, um "nós". Não é, porém, um "nós" monolítico dos Bispos, do Papa e dos Padres, frente a um outro "nós" monolítico dos leigos. Há muitos carismas, serviços e funções no seio do povo cristão. E, por isso, os leigos não são a tropa da hierarquia. A luz da consciência cristã não está só nos Bispos e nos Padres. A sensibilidade cristã dos leigos também é plural: pertençam ou não a vários grupos e movimentos com caminhadas e espiritualidades muito diversas. Nada nem ninguém pode substituir a consciência de cada um. S. Tomás de Aquino chegou ao ponto de dizer: crer em Cristo é um bem. Mas se aparecer à consciência como um mal, esta não o pode aceitar sem pecar (S. Teológica, I-II, 19, 5). Porquê? Porque contraria o que há de mais decisivo em cada pessoa, a sua consciência, embora cada um também deva ser responsável pela consciência que tem. Pertence à Igreja, a toda a Igreja, em todas as suas expressões, sensibilidades e movimentos, ser uma escola de sabedoria e de liberdade para que o amor e a misericórdia não sejam negados a ninguém, desde o começo até ao fim da vida humana. Deve continuar a manifestar-se, na primeira linha, contra a fome, as doenças, as guerras, que dizimam milhões e milhões de vidas humanas. É sobretudo aí que se vê quem é pela cultura da vida e quem é pela cultura da morte. É também aí que a Igreja aparecerá ou não como sinal e instrumento de salvação. |
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