Em latim? De costas para o povo?

1. Várias dioceses de França, e não só, parecem assustadas com um decreto pessoal do Papa Bento XVI (Motu proprio) de liberalização do latim e possibilidade de voltar à celebração da Missa de costas para o povo. Seriam essas algumas das exigências de antigos seguidores do Bispo Marcel Lefebvre que recusou o Concílio Vaticano II (1962-1965) e fundou uma "fraternidade sacerdotal" para impor à Igreja o seu tradicionalismo. A 29 de Junho de 1976, apesar de estar proibido por Roma, ordenou um grupo de padres com esse objectivo. Alguns dias depois, Paulo VI assinou um decreto que o suspendia do exercício do seu ministério episcopal.

BENTO DOMINGUES, O.P. ............Público, Lisboa, 12 de Novembro de 2006

Através de deserções, teimosias, negociações e provocações, a ruptura, o "cisma", consumou-se. Em 1988, João Paulo II excomungou-o. Fundados em pseudo-argumentos históricos e numa teologia marcadamente ignorante e pueril, os tradicionalistas, que abandonaram o bispo excomungado e regressaram ao seio da Igreja católica, não desistem, no entanto, de reivindicar os rituais litúrgicos anteriores ao Vaticano II.

Estarão, de facto, os católicos dispostos a aceitar essas exigências? As negociações continuam e a contra-informação fez correr a notícia que os tradicionalistas já tinham ganho a batalha. João Paulo II não teria sabido governar a Igreja com a sabedoria que reconhecem a Bento XVI.

No discurso de abertura da Assembléia Plenária do Episcopado Francês (04.11. 2006), o Cardeal J.-P. Ricard esclarece que a decisão de liberalizar, para os padres, a possibilidade de dizer a Missa segundo o missal de 1962 ainda não foi tomada. O Motu proprio anunciado também ainda não foi assinado. O seu projecto vai continuar a ser submetido a diversas consultas. Temos, portanto, direito a apresentar os nossos receios e os nossos desejos.

Segundo o Presidente da Conferência Episcopal francesa, o projecto não se inscreve, de modo nenhum, no propósito de dispensar o missal de "Paulo VI", nem pretende «fazer uma reforma da reforma litúrgica». Este projecto resulta do desejo do Papa Bento XVI fazer o que lhe é possível para acabar com o "cisma lefebvrista". Ele sabe que, quantos mais anos passarem, mais as relações se distanciam e as posições se endurecem. Olhando para a história dos grandes cismas, pode-se perguntar se não existiram ocasiões falhadas de aproximação. O Papa deseja estender a mão e acolher pelo menos aqueles que manifestam um profundo desejo de comunhão. É neste espírito que é preciso compreender o documento anunciado .

Se é de louvar esta atitude acolhedora, muitos lamentam que o Papa actual, enquanto foi Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, não tenha estendido as mãos àqueles que manifestavam o seu desacordo em relação a medidas que contrariavam o espírito do Vaticano II. Sentem que há dois pesos e duas medidas.

2. Recuemos um passo. O Cardeal Ratzinger, nos diálogos com Vittorio Messori (1) e, no momento em que este se referia à reforma litúrgica como a um cavalo de batalha do integrismo patético de Lefebvre, interrompeu-o para esclarecer: «Diante de certos modos concretos de reforma litúrgica e, sobretudo diante de posições de certos liturgistas, a área de desagrado é mais ampla que a do integrismo anti-conciliar. Para dizer de outra maneira: nem todos os que exprimem um tal desagrado devem, por isso, ser necessariamente integristas».

Este jornalista recorda um texto, de 1975, do professor Ratzinger: «A abertura da liturgia às línguas populares era fundada e justificada: também o concílio de Trento a tinha presente, pelo menos a nível de possibilidade. Seria, pois, falso dizer, como certos integristas, que a criação de novos cânones para a missa contradiz a Tradição da Igreja. No entanto, falta ainda ver até que ponto cada uma das etapas da reforma litúrgica, depois do Vaticano II, foram realmente melhorias, e não, pelo contrário, banalizações; até que ponto foram pastoralmente sábias, e não, pelo contrário, tolas e temerárias».

Certa liturgia pós-conciliar tornou-se opaca ou enfadonha por causa do seu gosto pelo banal e pelo medíocre. Ratzinger não propõe, todavia, que «a liturgia seja um show, um espectáculo que necessite de directores geniais e de actores de talento». 

Também no campo litúrgico, dizer catolicidade não significa uniformidade: «pelo contrário, o pluralismo pós-conciliar mostrou-se estranhamente uniformizante, quase coercitivo», não permitindo níveis diversos da expressão da fé, embora dentro do mesmo quadro ritual. As preocupações de Bento XVI com a liturgia não são, portanto, de agora.

3. Quanto à liberalização do latim, parece-me uma questão sem sentido. Ele nunca esteve proibido na Missa. É o próprio Vaticano II que, nos ritos latinos, o recomenda, mas não o tornou obrigatório como os integristas exigiam. Ao abrir novas possibilidades, não estava a condenar uma língua. Já é tempo de acabar com a mania das alternâncias exclusivistas: o obrigatório passa a proibido e o proibido, a obrigatório.

Quem não estiver distraído nota que, nas celebrações actuais, a nossa linguagem litúrgica já é tecida de arameu, hebreu, grego, latim e português. Isto mostra que o Cristianismo não é uma "Religião do Livro" e, muito menos, uma religião que tenha os seus livros numa língua normativa, como acontece no Islão.

Hoje, sobretudo por obra e graça das diversas Igrejas cristãs, a Bíblia está traduzida como nenhuma outra literatura da humanidade.

A grande questão litúrgica é a beleza. Bento XVI tem razão. A beleza litúrgica pressupõe arquitectura, textos e música de qualidade para exprimir a fé, a esperança e o amor de   uma comunidade concreta. Não para dar um espectáculo, mas para criar um clima intenso de oração e de reforma de vida.

A sensibilidade estética de uma comunidade não é um pressuposto imóvel, forma-se. Exige imenso trabalho e a colaboração de toda a comunidade em serviços diferenciados. Como dizia alguém, o laço entre a liturgia e a vida da comunidade faz com que não se possam transpor celebrações de um lado para outro. Seria uma liturgia asséptica, sem cor nem odor.

Depois de tantos anos de Concílio, tornar o latim obrigatório e celebrar de costas para o povo seria desejar ver o povo de costas para a Igreja.

 
(1) Cardeal Ratzinger, Diálogos sobre a Fé, Lisboa, Verbo, 1985, reimpressão em 2005.