Deus não é
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BENTO DOMINGUES, O.P. .....................Público, Lisboa, Setembro de 2006 | |
Perante os embaixadores dos países muçulmanos, pôs de lado as suas convicções pessoais e submeteu-se às declarações da Igreja Católica, no Vaticano II, classificando-as, aliás, como a Magna Carta do diálogo islamo-cristão. Não ficou por essa declaração de princípios: "Prosseguindo a obra empreendida pelo meu predecessor, o Papa João Paulo II, desejo vivamente que as relações de confiança que se desenvolveram entre cristãos e muçulmanos, desde há muitos anos, não só continuem, mas se desenvolvam num espírito de diálogo sincero e respeitoso, fundado num conhecimento recíproco sempre mais verdadeiro, o qual reconhece, com alegria, os valores religiosos que temos em comum e que, com lealdade, respeite as diferenças." A coloração diplomática desta audiência mostrou que não são apenas os Estados muçulmanos a misturar religião e política. As funções de bispo de Roma, de Papa e de chefe de Estado do Vaticano, concentram-se na mesma pessoa. Por isso, não é de espantar que provoque leituras diferentes, segundo a perspectiva e os interesses do observador. O que estava, no entanto, em causa era o restabelecimento de um clima propício à continuação e aprofundamento do dialogo inter-religioso e intercultural. Bento XVI destaca o seu alcance missionário: os nossos contemporâneos esperam de nós um testemunho eloquente que mostre a todos o valor da dimensão religiosa da existência. Fiéis aos ensinamentos das suas próprias tradições religiosas, cristãos e muçulmanos devem aprender a trabalhar em conjunto, como já acontece em diversas experiências comuns, para acautelar qualquer forma de intolerância e para opor-se a qualquer manifestação de violência. E acrescenta: "Nós, autoridades religiosas e responsáveis políticos, devemos guiá-los e encorajá-los neste sentido." Para desfazer os equívocos de Ratisbona, o Papa recorre, mais uma vez, ao Vaticano II: "Ainda que, ao longo dos séculos, tenham surgido numerosas dissensões e inimizades entre cristãos e muçulmanos, o santo Concílio exorta-os a todos a proteger e a promover, em conjunto, em favor de todos os homens, a justiça social, os bens da moral, a paz e a liberdade." Serve-se com eficácia, e muito a propósito, do memorável discurso de João Paulo II aos jovens, em Casablanca (Marrocos): "O respeito e o diálogo requerem a reciprocidade em todos os domínios, sobretudo no que diz respeito às liberdades fundamentais e, mais particularmente, à liberdade religiosa." Já nestas crónicas lembrei que não deve haver dois pesos e duas medidas: os muçulmanos não podem, honestamente, querer gozar de liberdade religiosa e política nos países de acolhimento e nada fazerem pela liberdade religiosa e política nos países de origem. Neste mês de Ramadão, o discurso de Bento XVI bem podia servir como programa de emagrecimento de desígnios tenebrosos que, cristãos e muçulmanos, alimentam uns acerca dos outros. Não há aproximação possível sem uma recíproca informação livre, crítica e exacta. Mas se é verdade que sem conhecimento não é possível o amor, sem amor o conhecimento mantém o outro à distância (1). Conta-se que Moisés foi aconselhado a rodear-se de 70 anciãos para orientar o povo. Dois deles, que não estiveram na cerimónia, receberam também o Espírito de Deus e mostraram-se ainda mais profetas, isto é, mais clarividentes do que os outros. Um jovem espantado foi contar a Moisés o que se estava passar. Um ancião, ao serviço de Moisés desde a juventude, não gostou nada do que ouviu e disse: "Moisés, meu senhor, proíbe-os." Mas este não concordou: "Estás com ciúmes por causa de mim? Quem me dera que todo o povo fosse profeta", isto é, crítico, clarividente! Esta história é exemplar porque, na confluência do político e do religioso - e seja perdoado o anacronismo -, o que se anuncia é a participação democrática, o exercício lúcido e universal da cidadania. Esta resposta nunca foi muito bem aceite. Apesar de Paulo ter dito que, em Jesus, Deus não faz acepção entre judeu e grego, escravo e livre, homem e mulher, prevaleceu, durante séculos, uma fórmula anticristã: "Fora da Igreja não há salvação." Desta maneira, Deus e a sua salvação ficavam dependentes de uma instituição religiosa que não teria de escutar a voz do Espírito fora das suas fronteiras. No meu entender, a originalidade de Jesus consiste em estar ligado a um Deus que tem, em seu coração, todos os seres humanos e que pode ser encontrado ou esquecido de mil maneiras. A religião verdadeira sabe que não é Deus que precisa de cuidados, mas os filhos de Deus. Esta é a mensagem da espantosa Carta de S. Tiago, lida nas missas de domingo, desde o começo de Setembro. Não adianta dizer que há um só Deus se esquecemos, cristãos e muçulmanos, que há uma só humanidade a respeitar e a servir por todos. |
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(1) O Islão. Um Desafio para o Cristianismo, Revista Concilium, n°. 253 (1994); Islão e Iluminismo: Novas Questões, Ib., n°. 313 (2005). | |