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BENTO DOMINGUES, O.P. ....................Público, Lisboa, Dezembro de 2006 | |
Se nos decidirmos a dispor de algum tempo para o silêncio, não nos perderemos na sociedade do consumo que nos consome. O Advento não é para gastar o tempo a embrulhar presentes, mas para descobrir formas antigas e novas de acolher a discreta presença de Deus no quotidiano, nos apelos dos outros, sem nos impormos a ninguém. A figura de João Baptista aparece, hoje, no Evangelho de S. Lucas, como um homem que, embora pressinta que está a ser ultrapassado, não insiste em perpetuar o seu tempo, como se, depois dele, o mundo não tivesse remédio, mas também não se demite das urgências do presente. Vivia num tempo de rebelião contra o Império romano, mas não seguiu a política da terra queimada. Optou por uma ética do possível, que alguns julgarão pouco heróica. Às multidões que o seguem propõe coisas muito práticas: quem tiver duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma e quem tiver mantimentos faça o mesmo; os cobradores de impostos não devem exigir nada além do que está prescrito; os soldados não pratiquem violência sobre ninguém nem denunciem injustamente e contentem-se com o seu salário. S. Lucas mostra que, apesar de toda a sua rudeza, tributário de um Deus da ira, João Baptista anunciava a todos uma esperança, um tempo outro: a era da alegria. 2. Na missa, a leitura do Evangelho começa com uma expressão, que de tão repetida, transporta-nos para o passado: "Naquele tempo...". E, muitas vezes, as homilias andam a resolver problemas de há dois mil anos com apêndices moralistas, pretensamente actuais, para destinatários que não estão na assembleia. A mensagem de Cristo parece ficar arrumada num museu de antiguidades. Esquecemos as figuras do nosso tempo que a incarnam na luta pelo advento de um mundo em que dê gosto viver. Sabemos o perigo das canonizações antecipadas. Mas isto não nos deve impedir de destacar aqueles que são testemunhas, grandes ou modestas, do mundo de paz que desejamos. Kofi Annan, secretário geral da onu, abandona o cargo, no próximo dia 31 de Dezembro. Não quis despedir-se sem transmitir as cinco lições que aprendeu, durante os últimos dez anos, lições que, na sua opinião, «a comunidade das nações também precisa de aprender, no momento em que tem de enfrentar os desafios do século XXI». A primeira lição é que, «no mundo de hoje, todos somos responsáveis pela nossa segurança recíproca. Perante ameaças como a proliferação nuclear, as alterações climáticas, as pandemias mundiais ou os grupos terroristas que operam a partir de refúgios seguros em Estados falhados, nenhuma nação pode garantir a sua própria segurança, afirmando a sua supremacia sobre todas as outras. Só trabalhando em prol da segurança de todos podemos esperar garantir uma segurança douradora para nós próprios. «Essa responsabilidade inclui a responsabilidade partilhada de proteger as pessoas do genocídio, dos crimes de guerra, da limpeza étnica e dos crimes contra a humanidade. Uma responsabilidade que foi aceite por todas as nações, na cimeira da onu, do ano passado. Mas, quando vemos os assassínios, as violações e a fome que são infligidos ao povo do Darfur, compreendemos que essas doutrinas não passam de mera retórica, enquanto aqueles que têm poder para intervir eficazmente – exercendo pressão política, económica ou, em último recurso, militar – não estiverem dispostos a dar o exemplo. Também têm uma responsabilidade para com as gerações futuras – a de conservar recursos que lhes pertencem tanto como a nós. Cada dia, em que nada fazemos ou não fazemos o suficiente para prevenir as alterações climáticas, tem custos elevados para os nossos filhos». Citei, por inteiro, a primeira lição. As quatro restantes são o desdobramento pormenorizado desta (público , 12/12/2006). Não se ficou, no entanto, por aqui. No seu último discurso, foi implacável com a política da Administração norte-americana que resolveu invadir o Iraque à revelia do Conselho de Segurança da onu, com as consequências trágicas, para as quais não há fim à vista. «Quando o poder, e especialmente a força militar, são usados, o mundo só o pode legitimar, se estiver convencido que tal está a acontecer pelas razões certas: por objectivos comuns e de acordo com normas aceites por todos». Nunca, nestes 61 anos, um dirigente terminou o seu mandato com críticas tão ferozes às políticas dos eu a. Longe de manifestar uma posição anti-americana, essas críticas constituem a defesa da sua melhor tradição. Kofi Annan, repetindo Harry Truman, lembrou que «a responsabilidade dos grandes Estados é servir e não dominar os restantes povos do mundo». 3. Nós, que não somos nem João Baptista nem ocupamos o cargo de secretário geral da onu, que podemos fazer pelo advento da alegria? Conhecemos a Regra de Ouro das principais tradições éticas, venham elas da antiguidade chinesa, indiana ou israelita: «não faças aos outros o que não queres que te façam a ti». Jesus foi mais longe: «ama o teu próximo como a ti mesmo». Na parábola do Bom Samaritano, ficamos a saber que o nosso próximo é aquele que precisa de nós, seja qual for a sua etnia ou a sua religião, nosso amigo ou inimigo. Este universalismo concreto foi bem expresso por S. Paulo: «não há judeu nem grego, não há escravo ou livre, não há homem nem mulher». Os enunciados, por mais belos que sejam, não fazem o que dizem só por serem antigos e repetidos. Também se repete que o Natal é a festa da família. De que família? Será ela o espaço onde se aprende que o mundo todo é nossa família? A liturgia deste Domingo é um hino ao advento da alegria. Que fazer para que seja mais do que mera retórica? |
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