APONTAMENTO SOBRE A REVELAÇÃO - EDUARDO AROSO


Poderíamos chegar a uma compreensão mais profunda do sentido de revelação meditando num título de um escrito de António Telmo, que, se não nos falha a memória, se intitula «Só Deus escreve sobre Deus».

Na óptica dos que advogam a supremacia do ser humano sobre todas as coisas, enfeitada pelas várias ideologias, compreende-se que, desligado o homem de Deus, afastado para longe da fonte original, tudo o que seja especular sobre a divindade é um cortejo de pensamentos desordenados e confusos, mesmo parecendo muito lógicos, humanísticos e metafísicos. É assim que em certas “linhas de modernidade” as ideias vitoriosas têm subido às tribunas e cátedras. E em muitos desses ambientes, ditos da cultura e dos valores, como «água mole em pedra dura» o autêntico sentimento religioso tem-se, discreta e nefastamente, intelectualizado. Nada mais ilusório e danoso para o espírito do que pretender pela ignorância de um lado, dar força ao outro, ou iludir com uma espécie de máscara atraente que arrebata a assistência dos ávidos proclamadores de vanguardas. O que há a fazer não é o fortalecimento obscuro e isolado de cada “hoste”, mas iniciar, à maneira de uma diplomacia superior, um caminho de entendimento recíproco, no respeito pela individualização potencial de cada lado.

Se é verdade, como cremos, que segundo os I.M. um dos maiores perigos em que a humanidade (e bem assim de qualquer zeloso discípulo) pode cair é no ardiloso e subtil laço do orgulho intelectual, então deveríamos reflectir na indiferença reinante entre sentimento (do coração como centro de sabedoria) e razão desengonçada, como diz o povo, que é o mesmo que destroncada. Mas destroncada de quê? Da verdadeira razão ou raio luminoso, como também têm dito os mais esclarecidos, o sentir intelectivo fruto da espiritualização do intelecto por um processo alquímico de perfeito equilíbrio razão/emoção. Só assim se explica que, por exemplo, a nossa vizinha Teresa de Ávila, apesar de nela haver a supremacia do sentir, dissesse que a oração, em pensamento, quando levada à perfeição suplantava, nos efeitos, a invocação pelo verbo. Aqui estamos no domínio duma quase inimaginável transferência de poder do som sobre a matéria para um mais alto movimento actuante, sobre matéria e espírito, de um puro pensar de totalidade.

Sabemos que Fernando Pessoa preferia dizer: «O que em mim sente está pensando». Não sabemos, ao certo, a razão por que não teria dito o contrário: «O que em mim pensa está sentindo». Talvez nos quisesse alertar para o panorama presente, sugerindo que é mais seguro não “fazer a nossa fé” partindo de alguns paradigmas reinantes actuais sobre matéria social e humana - ou das ciências sociais e humanas (!), como agora se diz - dados em cartilha e em conselhos a muitos sinceros devotos e pensadores que procuram a Verdade. Seria bom que não caíssemos no erro de fazer com que Deus não possa escrever sobre Deus, isto é, o homem desligado da autêntica Tradição Espiritual, se, por ela, quisermos chegar ao futuro, com mais segurança e menos sofrimento. Nela encontramos tanto o sentimento como o conhecimento; e nas vias tortuosas onde o caminhante há-de ser acometido pela sede torturante, só resta continuar a procurar pelo método que cada um entender ser o mais sincero e adequado. A certeza segue à esperança e à continuidade do andar pelo caminho eleito, mesmo que as nuvens de pó nos possam cegar durante algum tempo. S. Mateus exorta a cada um na sua busca, quando nos diz «Persisti em pedir e dar-se-vos-á; persisti em buscar, e achareis; persisti em bater, e abrir-se-vos-á (7:7)».

Julho de 2003