O sol mal se vê durante o dia. De noite as labaredas parecem representar o fim do mais baixo império, o dos actos hodiernos, estranhamente hodiernos. Por trás de espessas cortinas de fumo agitam-se, disformes, braços e corações, como se na costa do desespero dessem notícia de um naufrágio. Que estranho nevoeiro envolve o rosto desta Pátria que «Fita, com olhar esfíngico e fatal,/ O Ocidente, futuro do passado»?
Há na vida dos povos que criaram (criam) civilização um momento em que também Deus «oculta a Sua Face», seja por calamidades internas, seja por actos exteriores relativos a essas nações. A Casa Lusitana há muito que vem sendo fustigada por combustões de vária ordem. Desde o fogo da Inquisição, passando pelas muitas queimadelas colaterais (coisas de mudanças!) que o Liberalismo provocou, até à combustão mental que vem acontecendo nas últimas décadas, reduzindo também a uma espécie de cinza alguns frondosos caminhos da História de Portugal, que nunca tendo sido verdadeiramente conhecidos poderiam agora (perigosamente) conduzir a uma Razão que daria razão àquilo em que ninguém quer ver certa razão. A consequência mais grave tem sido uma certa esquizofrenia mental ou separação (isolamento) sem consciência que grassa na sociedade portuguesa, e à qual nos referimos em artigo recente.
Neste Verão, com a combustão propriamente dita, a vegetal, completa-se assim uma fatídica acção totalizante na Pátria portuguesa. Afectará isto o Portugal de sempre? Seja como for, estes estragos no Portugal de hoje (só paradoxalmente reparáveis), pela lei universal de reacção contrária despertarão um outro fogo de carácter diferente, ou melhor, de manifestação diferente, talvez um fogo espiritual adormecido, mas com efeitos diversos, como veremos. Se a força é contrária, o sentido também o é. Uma floresta viçosa não dorme, vive e faz viver. Ateado o fogo vem a destruição. E destruição porque este fogo é indevido. Nunca é de mais insistir que entre a profanação do corpo humano e a profanação do corpo da natureza não existe diferença nenhuma; o pecado contra o Espírito Santo é o mesmo. Há também uma estreita relação dos fogos em dois sentidos ou manifestações: a do plano material ou da cobiça e aquela situação daqueles que, espiritualmente, utilizam métodos indevidos para atear em si o almejado fogo da clarividência, e é sabido que o despertar incauto do chamado «kundalini» pode levar à mais deplorável das loucuras. O dragão da floresta, que deveria estar no seu próprio dormir, está a ser afrontado, facto muitíssimo mais sério do que aquele arrojo marialva do toureiro que corre para o touro “em pontas”. A loucura do país - não aquela provocada pelo fogo que arde sem chama -, mas a loucura das emoções que são quase terra, essa é de um perfil tal cujas consequências são imprevisíveis. Mas há neste emaranhado demoníaco que ronda as árvores, aqueles cujos corações sofrem e nunca se esquecem do verso de Caeiro «As santas a quem ninguém reza». Para esses as prometidas Línguas de Fogo descem como bálsamo redentor.
Como poderemos encarar o mito da Fénix (ou da Águia) portuguesa? Consideremos a expressão de Ortega y Gasset «O homem e a sua circunstância». Quanto a nós ela só é válida pela metade, isto é, a circunstância faz o homem, mas não o faz inteiramente em cada tempo, em cada época. E isto não invalida o verso pessoano «O homem e a hora são um só», pois aqui o poeta, juntando o homem e a hora (circunstância) fá-lo numa condição de excepcionalidade, ao invés do excessivo pragmatismo orteguiano. Assim, este tempo que vivemos, em vez de se pautar pelo referido verso de Mensagem, fazendo jus a tantos momentos da nossa História (ou Destino) em que os homens e a hora eram (e podem ainda ser) um só, em que as espadas mais do que intenção de matar pretendiam não perder o havido, agora parece que preferimos apenas a circunstância, onde a vontade também arde - se é que existe para arder! E a circunstância é aquela que diariamente ouvimos e vemos: se estamos no Verão é porque é tempo de fogos; se sempre tem ardido nesta altura é natural (?) que assim continue. Mal diria o pensador madrileno que as classes políticas dirigentes aprenderiam tão bem a sua tese.
Temos vindo a falar de combustão na Casa Lusitana. Não tem havido em Portugal uma verdadeira floresta de ideias made in facilmente inflamáveis? E quando brevemente as novas gerações acordarem abrindo os olhos percebendo que os sonhos não eram sonhos porque só poderiam ser de cinza? Como alguém disse: Deus nos livre «da fúria dos mansos»! Ao contrário do que é utilizado nas técnicas florestais, aqui fogo contra fogo talvez não resulte porque extingue o problema, e este persiste, o que faz pensar se o arremesso das novas gerações será em forme de tese ou antítese!
Segundo o noticiado, ardeu o pinhal de Leiria, que é como quem diz o pinhal de el-rei. Os troncos das árvores, feitos carvão (pese embora a necessidade vital do oxigénio), são agora a prova real de que não mais precisaremos de madeira para as naus. Fernando Pessoa tem razão: sendo as novas Índias espirituais, as embarcações e outros meios também o serão. E quando lemos no poema D. Dinis «É o rumor dos pinhais que, como um trigo/ De império, ondulam sem se poder ver.», cremos todavia que como o trigo invisível haverá pinhais também fora das vistas curiosas, esses onde se achará a matéria-prima paras as tais naus do futuro, onde nenhum fogo malévolo poderá chegar. Nessa já presente ondulação dos pinheirais a haver, também não é fácil saber claramente o que poderá ou não já ter acontecido, pois «Todo começo é involuntário».
Nunca o mito da Fénix pulsou tanto em nós. Em Portugal a Fénix parece ser a Águia. Aos penhascos e outros lugares altaneiros as labaredas chegaram desassossegando de novo a ave solar. À sua inquietação, no ar, junta-se a fúria ou a tensa expectativa dos deuses, nas nuvens e para além delas, que nesta hora olham a autonomia feita tresloucada que ao homem foi concedida. Talvez a Fénix ou a Águia portuguesa não esteja completamente em cinzas. De penhasco em penhasco, de monte em monte, ela sobrevive sempre que mais se eleva para fugir do fogo rasteiro dos homens. Pode outra vez revestir-se de nova e dourada plumagem, mais brilhante e mais leve. Quando estender a suas asas amplas, quiçá translúcidas, não fará sombra a ninguém. Será vista por todos, mas poucos continuarão a saber o seu modo de voar no itinerário sibilino pelos céus.
24 de Agosto de 2005
(uma mundana quarta-feira de cinzas)
Eduardo Aroso
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