Se na sociedade portuguesa, como alguém disse, podemos observar alguns traços de esquizofrenia – no sentido do desligamento anómalo do que somos, cremos nós - então a mais simples das observações dirá que alguns pensadores poderão expressar essa mesma esquizofrenia, sejam eles esquizofrénicos ou não. Dir-se-ia mais: se quando falamos da complexidade que é a heterodoxia, e com o tempo não se vislumbre um fundo, vago que seja, de alguma unidade de pensamento, algum liame que quanto mais não seja nos deixe a meditar no mistério, então será melhor não considerar o problema. O valer a pena, aqui, redundaria apenas em desbaratar energia e correr mesmo um sério risco do acto obsessivo vir a cristalizar-se nalguma forma de encoberta idiotia. Para certa heterodoxia, como diziam outrora as vozes de certas mães incompreensíveis, também poderíamos exclamar: melhor fora que não tivesses nascido!
Esta proliferação heteredoxa - que quanto mais afastada da verdadeira arte de filosofar menos se inscreve no lugar próprio e por isso mais confusa, atentando contra o natural movimento de vida estruturante - nada tem a ver com o sibilino pensamento de José Marinho, para o qual nos remete Dicionário de Filosofia Portuguesa, pág 168, 2ª edição, de Pinharanda Gomes, onde lemos que «a teologia ortodoxa só é possível ali relativa à escolástica, da qual o organizador do dicionário fala e onde a heterodoxa filosofia assumir toda a dignidade». Ora a «dignidade» a que J. Marinho alude, certamente válida para qualquer situação de heterodoxia, significando muitas coisas, há-de referir-se, antes de mais, à cabal aceitação da mais profunda sinceridade do pensador, chame-se-lhe acto ontológico, honestidade intelectual, ou outro nome, no caminho eleito que não deve ser perturbado em demasia pelas hesitações dos tempos. Perseguir a via eleita, esperando como única retribuição a verdade, mesmo que alguns não andem lado a lado, e o único diálogo seja o monólogo com cada um, ou a fala mais audível com o Deus dentro de nós.
O que acabámos de dizer parece, à primeira vista, estar em contradição com o que nas primeiras linhas afirmámos sobre o não considerar o problema se ao fim de certo tempo se não se vislumbrar um fundo, vago que seja, de alguma unidade de pensamento. Não considerar o problema se ao entrar nele faltar a mais alta sinceridade e lealdade ao ideal, acompanhados do despojamento que for necessário. Só desta maneira a heterodoxia não oferece perigo, pois quando tudo parece perdido e em vão, surge o indício de que estamos na aura do mistério e da verdade. Neste caminho podemos claramente ver aquela exortação de Cristo quando nos fala de tudo perder para encontrar. Há, de facto, uma fronteira subtil que nos pode dar entrada para essa viagem sem naufrágio, ou levar aos destroços nas águas indesejáveis do racional sem alma, que é apenas lodo junto do espírito.
A intenção de certos autores portugueses actuais não é tanto a de escalpelizar a nossa conduta como povo, ir aos labirintos do sentir português, lançar mão do seu próprio estilo para caracterizar determinada época ou escola. O que parece movê-los é uma secreta premeditação (com alguma certeza) de que aquilo que possam escrever é lido com agrado no seu tempo e talvez no que imediatamente se lhe segue. Escrevem eles, e são lidos com agrado, todos sempre a dar conselhos aos reis sejam quais forem os reis; qualquer que seja o governo ou o estado da nação, o discurso nunca destoa de todo, porque o léxico das últimas décadas tem sido o mesmo; apenas a sintaxe tem sofrido algumas modulações.
Paradoxalmente, para bem ou mal dos nossos pecados, acaba tudo por cair em certa interpretação, curiosamente de dois lados opostos mas não contraditórios: dos espíritos lúcidos que recusam ser oradores oficiais e vivem da verdade como a abelha que vai fazendo (mas não vende) o mel; ou o mais fundo e nebuloso, mas imaculado, da alma do Povo que na hora crucial interpreta tudo do mesmo modo. Isto é, deram-lhe a gramática, e ele (Povo) fez uma sintaxe de espanto! É isto que confere significado ao facto de, nos últimos tempos, ao português, castigado de não votar livremente durante décadas, agora não lhe apetecer e ficar numa conversa de café mesmo que este seja ali à beira do local de voto, ou ficar a cavar no quintal, ou ir até à praia dando inconscientemente mais atenção à sabedoria das ondas e gaivotas.
Quando Pessoa disse que «as revoluções são um modo violento de deixar tudo na mesma» é de crer que se referisse às mudanças políticas, oficiais, legais e outras que tais, e menos à revolução no interior do Homem. Em certas épocas de mudança, pode surgir o desejo “transgénico” de fazer o que agora é habitual com alguns frutos: procurar obter uma espécie diferente embora com elementos de outros frutos. E a Natureza responde sempre de duas maneiras: ou isso pega, o novo produto é inofensivo e ela consente, ou o Homem começa desde logo a ter problemas com a afronta às leis naturais.
É sabido que há forças de desintegração/reconstrução, o passado o futuro, a lei de causa e efeito, e também as ilusões gerando a suave brisa para a silenciosa e corrosiva anarquia na autoconfiança portuguesa. Caminhos sujeitos a rectificação (como todo o caminho), onde passa o manto lustroso de internacionalismos mais do que universalidades, embora de acutilância crítica e exegética. Caminhos outros que não aqueles em que poderá não haver prémio à chegada mas apenas o júbilo da sinceridade de o percorrer. Mas desta maneira talvez nunca a candeia se apague, mesmo frouxa, seja qual for o vendaval ou a escarpa escorregadia, seja qual for a heterodoxia. Em Portugal tem sido relativamente fácil a certos intelectuais, até com alguma incursão na filosofia, pensarem o nosso destino ao jeito das necessidades imanentes, às vezes tão imanentes e alargadas que motivam transacções da mais variada natureza, mas passando sempre por aquele conceito de que a História é feita apenas de factos visíveis.
Já que nos aproximamos de mais uma data significativa do nosso calendário cultural, convém lembrar que tem havido figuras destacadas do nosso panorama cultural que (talvez por muito já terem dito e escrito) não suportam que se fale nas grandes datas, nas obras sublimes, enfim em seres humanos que se esforçaram (e esforçam) «mais do que permitia permite a força humana». Entre eles está Eduardo Lourenço que, em 1978, em França, escrevia: «Uma Pátria não deve nada a ninguém em particular. Ela deve tudo a todos. Nem a Camões, Portugal, que ele encadernou para a eternidade, devia alguma coisa.» E acrescenta: «Já se viu um poema “épico” assim tão triste, tão heroicamente triste ou tristemente heróico, simultaneamente sinfonia e requiem?».
Seja qual for o sentido em que tudo isto possa ser lido, não deixa de comungar do que atrás referimos como «suave brisa para a silenciosa e corrosiva anarquia...», uma lógica pós-modernista que acaba por nos fazer acreditar que, nos dias actuais, a um qualquer terrorista ou a um herói, a Pátria deve exactamente a mesma coisa (!). De facto, para os fazedores de certas leis e orientações educativas, a Pátria deve exactamente a mesma coisa, quer aos que vão dando o seu esforço e saber, quer aos que beneficiam de multi-emprego estatal, quer ao cidadão que paga impostos e ao que não paga, desde que todos se insiram na mesma estatística que motiva “fundos perdidos” ou apoios de emergência”.
As homenagens em que o Povo já não sente coisa alguma poderão ter os dias contados, serão apenas coisas institucionais. E aqui veríamos o episódio bíblico que relata um funeral, quando, face à natural comoção dos apóstolos, estes ouviram de Cristo: - Deixem que os mortos enterrem os seus mortos.
O ensaísta Eduardo Lourenço, fazendo certo jus a Álvaro Ribeiro – «pluma exotérica e brumosa», a Agostinho da Silva «que não se limitou a teorizar, mas conformou a sua experiência humana e espiritual à luz dessa mística que nele transcende a lusitanidade», não deixa de apontar «a duvidosa exegese» de Sampaio Bruno, Cunha Seixas, Leonardo Coimbra, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa. Sublinha que «a filosofia portuguesa oferece de nós mesmos a mais articulada contra-imagem cultural de tipo místico-nacionalista que se conhece». Ou não conhece, dizemos nós. É certo que para muitos intelectuais essa foi (tem sido) a imagem que passa. Há no termo místico algumas acepções diferentes, como diferente é o sentido de cultura quando se ouve dizer que «aquele clube tem uma determinada cultura ou filosofia» (?!). No sentido que Eduardo Lourenço parece conferir ao termo místico, isso pode ser visto como uma espécie de “linha de força anímico-cultural” de um Povo. Quanto à ideia de «nacionalista» parece-nos inadequado esse timbre para a filosofia portuguesa.
Seria de todo benéfico vir de novo a lume aquele breve mas pedagogíssimo artigo de António Cândido Franco «Oliveira Salazar e a Filosofia Portuguesa, publicado no nº 2 de Teoremas de Filosofia, dos editores Joaquim Domingues e Pedro Sinde, artigo esse esclarecedor, e que devia constituir contraponto à tese simplista de alguns quanto à falta de compleição da filosofia portuguesa:
«A cultura portuguesa do século vinte é constituída por três braços ou colunas. A coluna da esquerda é representada pelo magistério de António Sérgio e pelo desejo de progresso social. A coluna da direita aparece orquestrada pela actividade pública de António Sardinha e pela batalha da ordem política» ... «A terceira coluna é a do centro e por ela corre o abundante caudal aurífero dos mestres que sabem. Nasceu do hermetismo de Sampaio Bruno, alimentou-se, para decrescer, do republicano saudosista e libertário de Pascaoes, Pessoa, Cortesão e Coimbra e consolidou-se já na segunda metade do século com a filosofia acromática de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Este veio não é internacionalista, mas universalista e deu de barato a soberba demagógica do nacionalismo, pois o que de mais próprio há em Portugal é o sonho de um mundo universal, sem divisões de fronteiras ou raças. Ser universal é, em Portugal, ser português».
Confinados à ideia material do sentido de Império, embriagados nos labirintos duma estranha e sedutora dama que não passa à condição de verdadeira mãe, certos autores portugueses contemporâneos nunca jamais poderão ser «trigo de império». Assim, Portugal, agora só a matutar na velha casa lusitana, irredutível em tudo, pequenino como o grão de mostarda, não passaria disto, antes de mais, por falta de fé, já se vê. E assim vamos tendo os que sendo paradigma dos não-alinhados - inequivocamente rejeitando a concorrência dos lugares-comuns, a banalidade reinante - são todavia alinhados nesse estado mental desconfiante ou pelo menos amortecedor da ideia de que possa haver Portugal a partir de D. Afonso Henriques, e que talvez Camões já seja um equívoco no nosso tempo. Tempo este não muito propício a recordar e louvar heróis, talvez porque poucos ou nenhuns já possam ser verdadeiramente heróis, descontando, é claro, o anónimo estoicismo ainda de bastantes portugueses. Todavia, nada disto que aqui se escreve teria sentido se cada português constante nos registos civis tivesse alguma forma de heroicidade como ideal a atingir. Mas a inversão na superação dos limites (está visto que ninguém quer nem admite que isso possa acontecer), ao invés de ser um acto pacífico agita as consciências para a dor do absurdo que se expressa nas mais variadas atitudes de completa idiotia.
O “desemprego” dos portugueses dessas Índias que não vêm no mapa, junto com o outro da necessidade de ganhar o sustento material, os dois juntos ajudaram a criar a tensão actual. E assim a vida portuguesa continua cheia de espectadores delirantes, como no coliseu romano, agora assistindo à liça encarniçada entre o Estado Novo e o Pós-25 de Abril, podendo, eventualmente, chamar-se o Liberalismo do banco dos suplentes...
Podem, no entanto, os anunciadores da pequenez da Pátria, a outros fazer soltar a imaginação para idealizar um novo Afonso Henriques alargando “espaço”, que pode ser o da alma, nesta pequena casa lusitana – porque temos mar acima e abaixo de nós, verdadeiro sentido de “além-mar” (para quem puder ver); soltar a imaginação para que um outro D. Dinis possa criar outras universidades que sejam, de facto, para a criação; e até uns administradores do reino que deixem seus bens ao estado em vez dele os subtraírem.
Termino com a ideia com que comecei: tal como na psicanálise, que quando a ela entregues ou saímos vitoriosos ou perdidos para sempre nos destroços do regresso, certa heterodoxia actual, facilmente deslizante, é um campo subtil no qual ou se acende a lâmpada na difícil aventura (ainda que «por várias vias»), ou a viagem tem o fracasso garantido, esgotada a relação dos fenómenos com o luminoso interior de cada um. Cheio de flechas cravadas em todo o lado, Portugal guardou-se sabiamente no abandono. Sim, por causa de flechas (que são sempre flechas) que tanto foram para o infeliz S. Sebastião, como para D. Sebastião. E este só não sendo mais feliz por saber que poucos já acreditam nele. De outros, muitos outros, a sociedade, substituindo-se à Pátria, também já nada espera. E há um, apenas um, não sepultado completamente na recôndita memória portuguesa, no qual ainda acreditam, com esta diferença singular: apenas uma vez por ano. Assim é Desejado.
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