Aquilo que nos amarra como um nó do destino pode ser o que também nos ilumine de verdadeira liberdade, ultrapassando mesmo a da tríade da Revolução Francesa. O sentido mais profundo do título em epígrafe poderá conduzir-nos, em futuro não muito distante, ao almejado sonho até agora vivido por repetidos e alternados actores parciais de aristotelismo ou platonismo. Se, como alguém disse, é a terra (o local) que nos prende, também, por isso mesmo, se deve colocar a naturalidade de uma filosofia situada – neste caso, filosofia portuguesa ou pensamento situado – como é, por exemplo, a existência do Direito Natural. Não exactamente à maneira da usada e abusada analogia do micro e do macrocosmos, mas do particular que dá corpo à liberdade una do universal. A este só verdadeiramente importa o que no particular é susceptível de comungar das duas dimensões, evitando o igualitarismo proliferador de ausências. É este, parece-nos, o sentido profundo que Pessoa quis dar à sua conhecida expressão «O nosso destino é sermos tudo».
Na simbologia do Fausto, por onde se entra também se deve sair, não significando uma espécie de eterno-retorno, mas o pronunciar a senha do caminho. A chave que abre a porta é a mesma que a pode fechar. Nos caminhos superiores do espírito, a liberdade é tanto maior quanto maior é o amor, seja no pensamento de Leonardo Coimbra, seja no de Agostinho da Silva, nas modulações de acção que este lhe imprimiu, a das múltiplas possibilidades de ser. Vários “centros” podem gravitar em liberdade, tenham o único centro por mais ou menos obscuro, conquanto haja ordenação na vida. Portugal, Brasil e toda a lusossofia (assim gosto de dizer) podem ser vários centros de um todo maior. Nesta conjuntura podemos ver muito claramente o princípio sistémico de receptividade, ainda que operando em níveis nem sempre conscientes.
O que nos prende é o que nos liberta poderia expressar um dos traços essenciais do pensamento de Agostinho da Silva, cujo centenário hoje se celebra. O autor, explicavelmente, tão brasileiro como português, simboliza também o que o Brasil é, ao invés do que parece ser; e quanto a Portugal, o poder ser, ao contrário do que é dado como moderna realização acelerada. O citado filósofo, nascido no Porto, em 13 de Fevereiro de 1906, fundador de universidades e centros de estudo na pátria de Gilberto Freyre, pronunciou-se lucidamente ao afirmar que o Brasil «não foi um território que Portugal submeteu; foi o generoso acolhedor de todos aqueles que não queriam submeter-se a Portugal». Esta espécie de cisão esclarece melhor a nossa condição de povo que do naco da Europa toma apenas o que lhe é dado tomar, atirando-se então mais para o mar do que para o velho continente. É Agostinho de Silva que no Ensaio para uma Teoria do Brasil nos diz que «a porção particular de Europa que abordou o Brasil e nela exerceu maior influência já se afastava, por condições especiais da sua estrutura geográfica, psicológica e histórica, das linhas mestras do desenvolvimento cultural europeu». De facto, a árvore apoiando-se na raiz sempre debaixo do solo, tem o ímpeto natural de crescer esplendorosamente para os céus, à procura de mais sol e de mais azul.
O português partiu e parte sempre de outros modos menos visíveis. Mas quando o faz no espaço, não se pense que é para um desfecho último, ao jeito do Filho Pródigo. Se festa houver, não é, na maioria dos casos, por necessidade de arrependimento, mas pela aventura invisível do subjectivo em qualquer parte. Habitante universal, pode dizer-se, como na linguagem rústica, que em qualquer canto do mundo «pega de estaca». Há, de facto, uma outra identidade portuguesa disseminada por incríveis paragens, que não usa bilhete de identidade qualquer que seja o país onde se encontre, e muito menos cartão de crédito. Para certos abastecimentos, possa ou não já estar esquecido aquele sentido de abundância de vida que o casal régio Dinis e Isabel mostraram instituindo as Festas do Divino, o português sabe, tanto quanto o brasileiro, que há um outro suprimento presente e vivificante da chama do Espírito Santo. Por isso, do típico modo impreciso nasce o improviso, mais como sentir do sopro da vida do que por calculismo de rectificação.
Pronunciar o verbo na Língua Portuguesa, certificado português de uma cidadania universal, é ir tirando as amarras ao que nos prende e aspirar à liberdade a partir da questão mais problemática, que é sempre o «calcanhar de Aquiles» ou de aqui. Cabe aqui também o verso pessoano, «Senhor, falta cumprir-se Portugal», alvo macerado de tantas prosaicas hermenêuticas, que depois de miragens territoriais e mesmo das sensatas implicações linguísticas, deve conduzir-nos por certo àquele Portugal «subterrâneo» de que nos fala o poeta numa carta ao Conde de Keyserling. Subterrâneo ou talvez empíreo, e que, por tal, não abundem os olhos de ver, na certeza de que os de Camões, na Ilha dos Amores, viram claramente a futura redenção do mundo por actos fraternais.
E o português que ficou cada vez mais com os dias labirínticos? Há ainda para esse as janelas manuelinas que, hoje, diríamos imateriais, e os corredores à espreita dos espaços inundados de nevoeiro. Porém, aqui, é sempre dada a possibilidade de ver, conquanto a luz não impeça, por excesso. Para o eminente pensador António Telmo, a ideia superior de nevoeiro deve traduzir-se por um globo imanente de luz irradiante, e que, por isso, impede a nítida visão a quem não esteja devidamente preparado. Ou seja, poucos saberão discernir neste extremo de luz; muitos não podem ver na sua ausência.
O português que ficou, menos aventureiro e afoito - ao contrário daquele que procurou ainda espaço para realizar finalmente o que não precisa de espaço – é mais paciente, de uma docilidade persistente, e tornou-se por isso subjectivo na sua aventura, que nem por isso deixa de ser aventura. E neste aspecto, quanto a certas heroicidades exaltadas nas últimas décadas, apenas pelos exílios no espaço, muito haveria a dizer. É que o caminho subjectivo pode ser tão doloroso que leve das incríveis privações à morte física, tais os infelizes exemplos de um Camilo, de um Antero, de um Raúl Proença. Se quiséssemos utilizar, no melhor sentido esotérico, os termos involução e evolução, diríamos que a referida via subjectiva (consciente) é evolutiva, enquanto a primeira se pode situar ainda na involução, pois a terra, como dissemos, é o lastro para a liberdade mas não ela própria, não havendo obviamente impedimento de harmónicos processos inclusivos.
No português de hoje, radicado neste espaço rectangular reduzido ao mínimo denominador que já não é comum, pois comum só a Língua, encontramos ainda assim dois tipos bem distintos. Uns não querendo ou não podendo libertar-se do que os prende, e sempre que pretendem esgueirar-se de si na compreensão, dão mais uma volta às amarras, tornando o corpo um pouco mais insensível, embriagada a alma de alimentos que não deviam ser sólidos; é mais uma volta da corda. De outro lado, de muitos lados, um punhado, melhor, uma mão de portugueses mantém o olhar tão fixo como sereno nas cordas libertadoras representadas nos Painéis de Nuno Gonçalves. Essa mão pode ser a dos versos de Antero «Na mão de Deus», quando nos diz que nela descansa o coração. Nós, com a devida vénia, poderíamos também dizer que nela (não dela) se liberta o coração, o mesmo é dizer «o sermos tudo». Essa Mão omnipresente é aquela que sabe dispor a corda que nos faz subir e não a que nos amarra. Subimos partindo do apoio dos pés e pela possibilidade do ponto imaterial que segura a corda por onde ascendemos à gávea mais alta além de todos os nevoeiros. De lá saberemos que a Ilha dos Amores fica aqui.
Portugal, 13 de Fevereiro de 2006
Eduardo Aroso
|