Do mesmo modo que Lima de Freitas, no texto do Colóquio Dalila Pereira da Costa e as Raízes Matriciais da Pátria (Porto, 1996), referindo-se ao destino português, se interrogou sobre os «tempos do fim - ou do princípio», também Fernando Pessoa havia intuído nos seus versos que «O sol brilha alto,/ Impossível de fitar». Num tempo mais recuado, mas eternamente presente, o dos arquétipos, foi-nos dito que a luz poderosíssima que conferiu a S. Paulo um baptismo iniciático no Espírito Santo, ao princípio também o cegou durante os simbólicos três dias. Foi Ananias que depois lhe retirou “as escamas” dos olhos, para que então o apóstolo visse o que via até ali e mais o que nunca havia enxergado...
O momento português, que nos fere de pasmo, e que certamente está também debaixo desse sol alto e vertical «impossível de fitar», dele não sabemos, e se, passada a loucura do pó do chão, vai retirar “as escamas” ao Povo «mansa colmeia a que ninguém colhe o mel», como disse Torga. Seja qual for a diferença qualitativa de sentido das referidas escamas, num destino que se arrasta controverso desde D. João II, num povo sempre esfomeado por um espaço que os governantes não têm sabido medir, por ínvios caminhos de sofrimentos vários, sempre com mais assaltantes em cada curva, o certo é que vieram-nos as “escamas”. Aos anseios legítimos e interiores da alma sempre se tem levantado mais pó. Agora não há quem possa, por enquanto, depois dos simbólicos três dias, retirar sabiamente as escamas, estas feitas de banalidade reinante (ou republicante), de mesquinhez instalada, que neste pântano geram, rapidamente e em quantidade, a inveja. Camões, que bem anteviu este estado de coisas, teve o cuidado de escrever a dita palavra como a última do último verso de Os Lusíadas «Em à dita de Aquiles ter inveja», sinal a que não se tem dado a devida atenção.
Quando as consciências, à maneira de uma lente convergente, se concentram unicamente nos elementos transitórios, então é muito possível que ninguém veja onde é que Portugal tem a sua verdadeira produtividade (criatividade) e até quem são esses agentes criadores. Não se vê essa pátria «fora do tempo» como sabia José Marinho, ou, melhor, trans-temporal, impossível (sob pena de absurdas convulsões) de se fixar apenas neste tempo de globalização, nesta época não de Europas como deveria ser, mas de Europa que agora imita o que Castela fez durante séculos na Ibéria: uma centralização absorvente e esgotante, sempre incompleta, pois Portugal, em 1385, em Aljubarrota, dita a primeira palavra para o que devia (deve) ser uma ideia de Europa. Nada de absorções, sobretudo para quem tem pernas para andar (ou barcos, ou ideias, ou sonhos).
Nós cá vamos vivendo no paradoxo, neste extremo de incompreensão (ou compreensão): no que se pode exprimir pelo ideal mais alto, faltando-nos sempre o espaço, agora nem tanto físico, mas aquele, por exemplo, que deveria ser de intensa vida cívica, actos que certa mesquinhez nacional de facto não permite, sufocando tudo e todos. Um certo statuo quo reinante (ou republicante), feito de palavreado público dito a quem se deleita a ouvi-lo e de pseudos actos reformistas, constitui hoje o primeiro e o mais potencial artigo da Constituição.
O que deveria ser o ideal mais alto já só o é para uma escassa minoria consciente. A meta fica ali adiante, e mesmo assim ninguém lá chega. Com o Povo procede-se do mesmo modo como na agricultura – aplica-se o fertilizante para que cresça rápida e vistosa a opinião pública que se pretende; a beleza tornou-se invisível pelo nada que alastrou e se povoou de fantasmas do tipo do delirium tremens. Portugal tornou-se «O medo de existir» como disse José Gil, medo que, infelizmente, se tem multiplicado silenciosamente, pese embora as palavras de ordem das cerimónias oficiais, as alvoradas lúdicas que nos sacodem, ou o optimismo das percentagens que, à maneira de estranhos pêsames, nos confortam mais ou menos mensalmente.
O pensamento português que ainda subsiste tornou-se implosivo. À maneira de ouroboros, morde a sua própria cauda, por isso é legítima e apelativa a interrogação de Lima de Freitas sobre este fim (começo, ou recomeço) de Portugal. Se, como dissemos, o melhor de nós se tornou implosivo, então é possível que possa agir como a semente: recolhida em si, unificada na essência, basta apenas que o Sol da Hora ou que a hora do sol a faça brotar. Será certamente uma semente aberta, como nunca se viu, que não repete outras sementes, pois cada primavera chega sempre depois da última que se cumpriu no respectivo fruto de verão. Semente que só poderá desabrochar fora da terra material, mas nunca fora do húmus de um universalismo que ponha a claro os seus inimigos, tais como os internacionalismos de contrato que desconhecem o viver fraternal. Não se sabe se a ânsia de Pessoa quando disse «... falta cumprir-se Portugal», invocava o Senhor para que de facto se cumprisse, o mais rápido possível, o ciclo antigo. E não se enganou o vate, pois, precipitada a acção dos últimos tempos, talvez tenhamos a explicação para esta Hora tão dilatada, tão penosa, tão insuportável. A Natureza nunca inviabilizou as acções (ainda que sujeitas ao erro) dos homens tendentes ao bem, ao belo e ao justo. E quando elas, mesmo generosas, ficam aquém das expectativas da própria Natureza, podemos esperar pelo seu reajuste certo.
Pinharanda Gomes, em entrevista há algum tempo a um semanário português, afirmou que «um povo que não se pensa, não merece existir». A expressão faz jus ao nosso panorama actual: de superfície, somos apenas um prolongamento de estradas que vêm da Europa Central e de Leste, uma finisterra onde encerram fábricas diariamente (no mar pesca-se pouco), e onde é cada vez mais difícil e mais caro aprender a ler, escrever e contar. Existimos, é certo, subterraneamente, tal como, ao tempo, foi informado o erudito Keyserling. Só não se lhe disse, porque não podia ser, quando é que o dragão despertaria...
E é pena que em mais um Dia de Camões não se ponha um vidro fosco para olhar o tal «sol alto,/ Impossível de fitar». Se é forte demais, devemos, para tal, arranjar o modo de o ver sem ferir os olhos. Queremos com isto dizer que conduzir à Verdade não pode ser o pronunciar gratuitamente a própria Verdade. Procurá-la, e não recebê-la, faz parte do caminho. De qualquer modo, perde-se sempre o ensejo quando falamos do fruto suculento, sem mencionar o nome da árvore; quando apontamos a terra onde tudo cresce, o chão onde bate o sol, sem chamar a atenção para esse centro irradiante que, mesmo impossível de fitar (ao que parece cada vez mais a mais portugueses), existe para que haja vida, quer o aceitem ou não, quer o compreendam ou ignorem.
Camões futuro, ou de todo o tempo - esse Camões ainda mais afastado dos portugueses do que o da circunstância e que já não fica na memória da nossa gente, nem sequer no dia 10 de Junho - , esse mesmo a quem se foge com receio de se cair em «discursos do passado», é também o «Sol impossível de fitar». Por isso há que humildemente procurar um vidro fosco ou, mais modernamente, óculos ajustados. Só faz pedagogia a madre experiência. Doutro modo é fácil cair na vaidade que nos faz supor que vemos claramente o que não existe, por nada irradiar.
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