JONAS PULIDO VALENTE
Qual é a ocasião perfeita, mesmo perfeita, para beijar alguém?
“Malta, o meu álbum primo faz quarenta anos, e vocês como têm peso a mais para me vir ver ao Porto, vou eu à montanha. Nova data em Lisboa. Por favor, por favor, mas mesmo por favor venham-me ver ao concerto.”
Qual a ocasião perfeita para beijar alguém? Na osmose do reconhecimento mútuo, no encabecilhamento de frequências que se tocam aquando as emoções estão altas, talvez seja essa a ocasião, mas eu diria que a ocasião só a é em si mesma.
Bem, consegui bilhetes, à boleia de um grupo de três para um camarote no velho, respeitável, poeirento e nova-iorquinesco Coliseu de Lisboa. Com a Patti a retocar o Horses para que todos o pudessem ouvir como uma celebração. Com o universo a contorcer-se de entusiasmante juventude.
Talvez durante o Redondo Beach, naquela maralha que não passava dos trinta e cinco anos, com média de dezassete talvez pudesse pôr os braços à volta da tal rapariga de cabelo cor de feno e dar um beijo cego, criminoso, talvez francês, de época, angelical, mestral, abismal, merdoso e finalmente, repetitivo.
Com a Patti a cantar, com a banda a rasgar, mas eu estava no camarote, a saltar, a ver os anjos de cima.
Entre as músicas, ela dizia “Amo-vos pessoal”, alguém gritava “WE LOVE YOU”, ela repetia, “I love you more”, Ponto.
Após algumas músicas ela disse algo que ficou comigo “Olho para vocês e lembro-me de uma estátua do Jim Morrison, talvez a campa dele no Pierre Lacchaise, e tento parti-la, para que o seu espírito possa partir numa nova e brilhante aventura.” Vem connosco.
Nós, cavalos, cavalgando, ou cavalados, na irmandade do proto-cool, ali, sob o pó como se fôssemos a inauguração de uma era, jovens, até os velhos eram jovens, mortais ao ponto de arrancar os olhos, invencíveis na sua sede de imaterialidade, de ideias sobresselentes.
Saudades. Pensaria que seria sempre assim, com aquela electricidade latente. Como estaria enganado.
Éramos amigos e cúmplices, condenados, omnipotentes. Judeus cristianizados, moçárabes do Iemanjá, sem adornos nem pertenças culturais, algo elevados, abaixo do palco, amigos de backstage, navalhas por tirar.
O que é o punk senão o primeiro pintelho de uma floresta, sem ser grosseiro, mas ao mesmo tempo inocente e orgulhoso. Não somos humanos, não somos outra coisa.
Amanhã o Horses fará cinquenta anos, Patti fará de novo vinte.
Espero um dia encontrar de novo a nossa televisão sem sinal, pois esse ruído branco é de certa forma um não-psicadelismo transcendente, ferrugento, que nos eleva acima da nossa própria cama.
Ninguém comprou cerveja nessa noite, trocámos por ofertas.
Ninguém comprou coca nessa noite, encontrou-se-a na rua.
Ninguém comprou cavalo nessa noite, foi-nos administrado à socapa.
Todos respirámos a distortion, todos jantámos no restaurante em anexo ao recinto, com vinho da casa e sobriedade no trato imediato.
E ainda bem.
Um destes dias, é a minha obra-fluór que fará quarenta anos.
Nesse dia, esperarei não menos do que encontrei, mas também não mais, pois assim será demais para este mundo asmático.
Até amanhã, som. Até amanhã, profeta. Pisco-te o olho e espero que nos encontremos lá.