A.M. GALOPIM DE CARVALHO
Escriturário ou empregado de escritório, foi a profissão do meu pai na antiga Companhia Alentejana de Seguros, “A Pátria”, e, aos fins de semana, em mais uma ou duas pequenas empresas (os filhos a criar eram muitos). A vê-lo trabalhar, aprendi o que era, nesses anos, esta profissão, na maioria dos casos, masculina. Havia, mas eram raras as mulheres escriturárias.
Escriturário, nos anos 30 e 40 do século que passou, era aquele que fazia a escrita de quaisquer instituições ou empresas comerciais e industriais com dimensão que exigisse essa actividade. E dessa escrita fazia parte a contabilidade, o expediente, a administração e tudo o que envolvesse trabalho feito à secretária, de caneta ou lápis na mão.
Ser escriturário ou guarda-livros, como também se dizia, nesses anos, tinha estatuto social acima do dos empregados de comércio, designados por caixeiros, e dos operários das poucas indústrias. Não tinha salário, tinha ordenado, em média, acima do destes profissionais. Usava chapéu de feltro do tipo vulgar nos homens desses anos. Digo vulgar porque havia um “chapéu à diplomata”, com abas enroladas para cima, usado por alguns eborenses tidos ou assumidos como mais importantes do que o vulgo. Por dever de ofício, o meu pai vestia fato completo, de calça, colete e casaco, e camisa com gravata. Alguns homens desta classe usavam “polainitos” de feltro a cobrir os sapatos. Botas, só se fossem de cabedal fino. Nos casos de que me lembro, os escriturários gozavam do regime laboral dito de “semana inglesa”, isto é, além do Domingo de folga, tinham também as tardes de Sábado.
Nos cafés e nas sociedades recreativas conviviam com patrões do comércio local e da pequena indústria, graduados do exército e profissões liberais. Daí que a expressão “manga-de-alpaca” que, em sentido figurado, se lhes referia, era dita depreciativamente, em tom de despeito, por uns, e no de desdém, por outros.
Em sentido real, as mangas de alpaca eram duas mangas postiças, uma para cada braço, numa prática vinda do século anterior e ainda utilizada pelos escriturários da primeira metade do século XX. Eram feitas de um tecido leve, primitivamente alpaca, vestidas por cima do casaco ou da camisa, desde os punhos até ligeiramente acima dos cotovelos e apertadas nas extremidades com um elástico, de forma a não danificar as respectivas mangas durante o serviço.
Como o nome indica, o escriturário escrevia, não como hoje, nos teclados dos computadores, mas à mão, com caneta e aparos de molhar na tinta (solução aquosa de pigmentos e outros aditivos), via de regra, a azul e, para determinados destaques, a vermelho. Escreviam em livros e, daí, o nome de “guarda-livros” que também se lhes dava. Esses livros, adequados ao tipo da empresa, registavam a respectiva contabilidade e outros procedimentos da administração, incluindo, balanços e actas das reuniões da direcção ou das assembleias no caso das sociedades. Para tal, os interessados nesta profissão saíam do curso de Comércio da então Escola Industrial e Comercial Gabriel Pereira (situada no edifício do antigo Colégio do Espírito Santo), onde, além das disciplinas teóricas adequadas e da dactilografia, aprendiam a escrever em caligrafias convencionais, então muito em uso, como a francesa, a inglesa e a alemã ou gótica, usadas em títulos, em palavras e frases a destacar. Havia aparos próprios para cada um destes tipos de caligrafia. Fendidos na ponta, alguns deles permitiam desenhar letras com traço mais fino ou mais largo (fazendo mais ou menos pressão sobre o papel) no respeito pelo tipo de caligrafia escolhido. A caneta de tinta permanente, uma invenção de escrever a tinta, sem precisar de tinteiro, já fazia parte do material escolar dos alunos do Liceu, mas não era a mais usada no escritório.
O uso de tinta líquida exigia o uso do “mata-borrão”, um papel encorpado, sem goma na sua constituição e, por isso, bom absorvente da tinta. Assim evitava-se que algo que passasse sobre a escrita acabada de fazer, a borrasse. Um pequeno suporte baloiçante, de uso manual, com uma superfície cilíndrica forrada com este papel, fazia parte dos objetos colocados sobre a secretária.
À mão do escriturário e indispensáveis ao seu trabalho, havia ainda a “raspadeira”, uma lâmina muito afiada, adaptada à ponta de um cabo, no género de um bisturi, com a qual raspava uma letra, uma palavra ou uma frase que tivessem de ser apagadas. Com o mesmo fim, podia utilizar os líquidos de dois frasquinhos, um com água, para diluir a tinta da palavra ou do conjunto a apagar, molhando com a ajuda de uma pequena vareta de vidro fixa à respectiva rolha e outro, com um soluto de hipoclorito de sódio (o mesmo da vulgar lixívia), colocado logo a seguir, com idêntico procedimento, o que, imediatamente, exercia a sua acção branqueadora.