Escravatura: atentado contra a dignidade humana

 

MANUEL RODRIGUES VAZ


Palestra lida no Restaurante O Pote, em Lisboa, no dia 3 de Novembro de 2021, no âmbito da Tertúlia À Margem

Em 1966, foi apresentado um filme em Luanda que, logicamente, não deveria por lá aparecer. Intitulava-se África Adeus e era realizado pelo cineasta italiano Gualtero Jacopetti, autor de outros documentários famosos como Mundo Cão e Europa de noite.

Ligado já na altura ao movimento cineclubista português, eu andava suficientemente informado para estas questões e depressa soube a razão por que o filme podia ser exibido por lá: por um lado, uma parte era um libelo contra a descolonização, por outro lado, as partes que também punham isso em causa tinham sido completamente expurgadas pela conhecida Comissão de Censura, useira e vezeira nestes hábitos.

Na verdade, uma das cenas principais do filme, que no então território português não pôde ser vista, era um embarque de escravos na praia do Egito, uma dezena de quilómetros a norte do Lobito. Corria o ano de 1961. Sim, corria o ano de 1961, já tinha começado a luta de libertação em Angola, e isto ainda acontecia.

Não, não fiquem muito admirados. Neste ano do senhor de 2021, ainda há países onde a escravatura é legal e mesmo no nosso jardim à beira-mar plantado às vezes aparecem nos jornais reportagens que nos dão conta de situações que assim têm de ser classificadas, como por exemplo o recente caso de Odemira.

A Global Slavery Index estima que existam, hoje, 29,8 milhões de pessoas que vivem em regime de escravidão. A África é o continente que tem a maior concentração de escravos no mundo. A região do Paquistão e Índia também não fica muito atrás (a Índia, inclusive, é o país que mais tem escravos em números brutos: quase 14 milhões de pessoas). O ranking foi feito respeitando a proporção sobre a população geral dos países. Se apenas o número absoluto de escravos fosse considerado, ele ficaria bastante diferente, com países mais populosos do mundo tomando a liderança, mas ainda forte presença de nações africanas: Índia, China, Paquistão, Nigéria, Mauritânia, Etiópia, Rússia, Tailândia, Congo, Mianmar e Bangladesh.

Escravos em Lisboa, no século XVI

A Associação para a Cidadania, Empreendedorismo, Género e Inovação Social, ACEGIS, fala noutros números, muito mais surpreendentes: «Em todo o mundo, 40,3 milhões de pessoas são vítimas da escravatura moderna: 24,9 milhões de pessoas foram submetidas a trabalho forçado e 15,4 milhões de pessoas tiveram de casar contra a sua vontade. As mulheres e as meninas são mais afetadas por este flagelo, somando quase 29 milhões do total de pessoas atingidas pela escravatura moderna, ou seja, mais de sete em cada dez pessoas (71%). Uma em cada quatro vítimas de escravatura moderna são crianças. O trabalho infantil, por seu lado, envolve 152 milhões de crianças – 64 milhões de meninas e 88 milhões de meninos. Ou seja, uma em cada dez crianças de todo o mundo.»

Digamos que este não é um panorama muito animador, quando, ao contrário do que seria de supor, a situação de escravidão continua a ser uma realidade, muito embora julgássemos que estava definitivamente expurgada.

É evidente que todos temos também culpa nesta situação, quando mais não seja por omissão. Não basta bramar contra, não basta protestar, urge praticar, é urgente lutar contra esta barbárie que persiste em continuar.

Porque, nós, consumidores e cidadãos, temos um papel fundamental em reportar casos de escravatura humana nas nossas comunidades, empresas e sectores de trabalho. Somos todos cúmplices deste crime através das nossas escolhas, compras, uso de serviços e investimentos.

Como é salientado pela ACEGIS, «Hoje, a servidão, o trabalho forçado, o trabalho escravo, o tráfico de seres humanos, a prostituição forçada, incluindo de crianças, a exploração sexual, os casamentos forçados e o trabalho infantil constituem as novas formas de escravidão moderna.

Um crime hediondo que exige todos os esforços para proteger os cidadãos e as cidadãs mais vulneráveis. Por detrás de cada vítima está um ser humano, privado da sua liberdade e tratado como uma mercadoria para a obtenção de lucro.»

Junte-se à luta contra a escravatura moderna e a todas as formas de negação dos direitos e da dignidade do ser humano – invectiva-nos Susana Pereira, fundadora da Associação ACEGIS.

Comecei a referir um pretexto de Angola, porque é bem um case-study para analisar. Em 1761, o marquês de Pombal, através de um alvará régio, acabou com o tráfico de escravos para a metrópole. A 10 de dezembro de 1836, uma lei proibiu o tráfico de escravos nos domínios portugueses ao sul do Equador.

Aquando da assinatura do Tratado de Viena em 1815, Portugal e Inglaterra acordaram regulamentar este tráfico. Contudo, a intervenção mais importante foi a do visconde de Sá da Bandeira, que, por decreto de 10 de dezembro de 1836, proibiu a transação de escravos nas colónias portuguesas a sul do Equador.

O Barão de Ribeira Sabrosa continuou as negociações com a Inglaterra e, em 1842, o duque de Palmela e Lorde Howard de Walden, embaixador britânico em Lisboa, acordaram abolir o tráfico de escravos nas possessões dos dois países, apesar dos prejuízos que tal medida iria acarretar sobre a economia ultramarina.

Diga-se de passagem que as exigências britânicas não tinham nada de humanitárias, mas sim de interesseiras, como foi o caso dos chocolates Cadburys, em S. Tomé, cujas pressões sobre Portugal tiveram a ver com acabar com a concorrência do preço do cacau, que os produtores de S. Tomé podiam vender mais barato por empregarem mão-de-obra escrava, ao contrário das colónias inglesas, que tinham seguido os conselhos de Adam Smith, segundo o qual a produção podia aumentar se pagassem justamente aos trabalhadores braçais, o que era, antes de mais, uma medida pragmática.

Contudo, só a 23 de fevereiro de 1869 seria decretada a extinção da escravatura em todo o território português. Mas isto foi apenas oficialmente, porque tudo continuou na mesma ou então com outra designação – os contratados – que mais não era do que escravatura, pois tratava-se mesmo de trabalho forçado, que continuou muito depois do começo da luta de libertação.

Vale a pena fazer uma citação do “historiador” João Pedro Marques, que chega a culpar os escravos como culpados da escravidão, mas que corrobora a minha asserção: «bem ao contrário dessa imagem (positiva), Portugal foi, na ordem dos factos, «um dos países ocidentais que mais tarde decretou a abolição […] e um dos que durante mais tempo permaneceu maioritariamente estanque ou refractário às ideologias e políticas abolicionistas».

Vou contar um episódio que reputo de muito interesse para desmentir a propaganda de que nas colónias portuguesa não havia racismo e tudo vivia no melhor dos mundos, conforme propalava o regime salazarista. Em 1972, tive de presidir a exames em Muxaluando, no norte de Angola, e logo na primeira tarde, estando a beber uns whiskies com o administrador, na varanda, apareceu um contratado numa das roças locais, cheio de sangue, a acusar o capataz, que lhe tinha batido com um bastão por se estar a desfazer das formigas que o tinham atacado em vez de ter continuado a capinar. Logo atrás, chegou o dito capataz, que, à nossa frente, o continuou a ameaçar. Felizmente, o administrador era um homem honesto e defendeu o contratado, invectivando o capataz para acabar com tal hábito.

Isto passou-se, repito, 11 anos depois do começo da luta armada. Os colonos portugueses não tinham aprendido nada.

Os professores de posto que me coadjuvavam nos exames, depois de me terem sondado, por precaução natural, perguntaram-me na última tarde, se eu quereria ir ver o acampamento dos contratados, que ficava situado a um quilómetro da vila. Claro, disse logo que sim, e lá fomos. Tinha visto muitas casotas de animais que tinham mais condições do que aquilo que eu não quis ver mais.

Devo dizer que, tão revoltado fiquei, refugiei-me nas cervejas, passei-me completamente, e só dei conta de mim quando na messe de oficiais do Exército comecei a gritar com eles e a acusá-los de ocupantes, que se fossem embora, após o que fui chamar os professores para irmos proclamar a independência de Angola. Percebendo que eu precisava de apoio, pois não estava normal, os meus colegas foram bater à porta onde dormia uma professora, esposa de um polícia, para me fazer um chá. Como não abriu a porta nem os atendeu, acabaram por me convencer a ir descansar, o que fiz, pois percebi que estavam cheios de medo.

Ainda não eram 7 horas da manhã e fui acordado com um berreiro na Administração. A professora estava a acusá-los de que tinham tentado violá-la, e mesmo quando eu me levantei à pressa para esclarecer a questão, não houve meios de a convencer do contrário.

É evidente, não foram só os europeus a praticar escravatura. Todos os povos têm culpa neste cartório; é uma questão de poder. Não esquecer os árabes, cujo tráfico obrigava a fazerem incursões várias por territórios europeus, e é preciso lembrar que o termo inglês para escravo é slave, que classifica os povos russos e as etnias circundantes: eslavos.

E já agora, terminemos com outra referência a Angola: a rainha Ginga, dos Ngolas, foi uma conhecida escravocrata. E ainda esta: um dos mais célebres escravos em Angola foi um inglês chamado Anthony Knivet, que o Salvador Correia de Sá fez passar por lá, ido do Brasil a caminho de Portugal.

Efectivamente, a escravatura é um crime hediondo que exige todos os esforços para proteger os cidadãos e as cidadãs mais vulneráveis. Por detrás de cada vítima está um ser humano, privado da sua liberdade e tratado como uma mercadoria para a obtenção de lucro.

Juntemo-nos, portanto, à luta contra a escravatura moderna e a todas as formas de negação dos direitos e da dignidade do ser humano – como nos invectiva Susana Pereira, fundadora da Associação ACEGIS.

Memorial às vítimas da escravatura que vai ficar no Campo das Cebolas, em Lisboa. Projeto de Kiluanji Kia Henda