Erosão

GISELA CASIMIRO


Gisela Casimiro (Guiné-Bissau, 1984). Escritora e artista. Vive em Portugal. Estudou Línguas, Literaturas e Culturas – Estudos Portugueses e Ingleses na FCSH/UNL. Com textos e fotografia publicados em Portugal, Brasil e Turquia, em 2017 foi poeta convidada no International Young Writers Meeting e apresentou a sua obra em Istambul, Konya e Gaziantep. Escreve crónicas para o Hoje Macau e publicou o seu primeiro livro de poesia, “Erosão”, em 2018, pela chancela da editora Urutau. Foi uma das autoras convidadas do Script Road/Rota das Letras – Festival Literário de Macau 2019. Faz teatro, voluntariado, e é activista.

Site:​ ​giselacasimiro.tumblr.com


EROSÃO
Sagrado Quotidiano Profano

 

DEUS

Deus não me pede nada, mas eu culpo-o de tudo.


CRISTO

Vestimos a mesma cor, mas eu carrego a cruz ao peito o ano inteiro.


NA IGREJA

Na igreja, uma passadeira vermelha como se Deus fosse uma extensão de mim e devesse agora sangrar em público à minha imagem e semelhança.


CONFISSÃO

Cristo está em minha casa, mas recusa-se a sair do quarto. Todos os dias lhe deixo um prato cheio de arrependimento e me esqueço de bater à porta.


O POEMA É UM CAMPO DE BATALHA

O poema é um campo de batalha, é um corvo. É a senhora que pede esmola sentada à beira das escadas rolantes na estação de comboios e que eu ignoro de cada vez que por ela passo. O poema é a nobreza que essa senhora terá a mais do que eu, é a esmola pura que eu não mereço, sequer, pedir-lhe. O poema é a árvore do cimo da qual eu aprendo que o meu coração tem fundo. Em algumas manhãs, talvez por os anjos se demorarem mais à minha volta, vejo-a da janela do meu quarto e sei: o poema é este comover contínuo. O poema é o caminho que ainda me falta percorrer para o amor que me foi destinado e que se apresenta sob a forma de imagens esbatidas, difusas de quem sei que espera por mim nalgum país distante e que se distingue do que eu habito agora por não bastar um abrir ou fechar de olhos para lá chegar. O
poema é o verbo salvar. O poema é a criança que no metro toca acordeão com um cachorro ao ombro, é um quadro. É o pé da minha avó, amputado, é uma nuvem. O poema é o meu silêncio para com o mundo. O poema é como sei que Deus é o ser mais solitário do Universo; é a minha oração, a minha forma desajeitada de fazer-lhe companhia.


AGULHA E LINHA

Agulha e linha, uma arte que não domino, mas gostaria. Talvez assim nunca perdesse ninguém. Talvez assim não me escapassem os sinais, o tempo a palavra mãe.


QUANDO ME FALTAR

Quando me faltar o Verão tocarei o teu cabelo.


O SOL NUNCA

O sol nunca se põe sobre o teu sorriso.


LEONARD COHEN MORREU

Leonard Cohen morreu. Pelo menos tenho o doce de tomate da minha mãe.


RAÍZES

Tens a altura das raízes que prendem a terra ao seu eixo.