ERNESTO DE SOUSA | ||
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INCONCLUSÃO | ||
Odivelas, 25 de Abril de 2001 Tenho tido imensas saudades tuas. Não só de agora, mas sobretudo desde que me pus a namorar o ciberespaço. Ias adorar entornar o caldo aqui comigo. Por duas os três vezes pus nas "Alquimias" imagens tuas, mas nem o Mitra, que adoro, chegou. Agora foi mesmo a sério, a Isabel deu uma ajuda. Fartei-me de trabalhar, em dois dias editei aquele livro que uma vez me deste, lembras-te? Olha que falta uma linha, estava cortada na fotocópia, mas não faz mal, ninguém vai dar conta. Fiz um truque para não se perceber. E tu nem título lhe puseste, maroto! A Isabel, gostava que a visses, continua Gradiva, continua Olímpia, continua Princesa de Portugal. Ela queria que eu editasse a Gradiva da Sema, mas isso já foi reeditado no livro da Assírio & Alvim.. De qualquer modo, para lhe fazer a vontade, fui ver das Semas, e encontrei um texto teu em que citas uma carta minha. Acerca da tua instalação Pre Texto II, na Diferença, com o avental como motivo dominante. Depois dedicaste-me até a Pre Texto III, em Coimbra. É na Sema número 2 que vem o avental. Vou citar-nos, porque preciso de te confessar um segredo. Aí vai: Numa breve, aguda e inteligente nota publicada no "Expresso" (6/II/82 acerca de PRE TEXTO II, e assinada apenas pelas iniciais do respectivo autor, M.C.B. (Maria do Céu Baptista?), pode ler-se: "A cor explode nos meus olhos" - diz E.S. - e explode também para quem, de nariz no ar, souber reparar no pequeno quadrado em demolição, palco de outros quadrados. A partir dai tudo é possível... Numa carta que me escreveu a 7.7.82, e que me autorizou a transcrever, escreve Maria Estela Guedes, acerca da mesma instalação: A tua instalação não é criticável. Ela não está ali para ser vista, está lá para apontar com o dedo para ti. Todos fazemos isso, afinal. Simplesmente, o Emesto de Sousa é capaz de o fazer de maneira mais ostensiva. Eu julgo que já te vou conhecendo, e acho que és digno de atenção. Realmente, entre apreciar um objecto convencionalmente designado por obra de arte e apreciar um homem, é mais estimulante apreciar o homem. Por isso, na tua exposição, havia realmente uma coisa digna de ser vista - tu.Parabéns por te fazeres obra de arte com tanto encanto. A tua arte és tu, e já não é pouco. O Ed. Prado Coelho tem razão quando te chama "militante cultural", e eu, como vítima das tuas militâncias, sou a prova do que és. E como dizia esse outro teu amigo, és um detonador. Também sou prova disso. Quando tiveres de ser julgado pelos teus actos, poderei testemunhar em tua defesa. Em suma, és elemento indispensável para que uma cultura seja dinâmica:................ és um mestre e eu orgulho-me de ter recebido lições tuas. Relativamente às artes visuais, concordemos que só tenho elementos para te ver a ti. Sinceramente admiro a tua inteligência: tudo o que se encontra na Diferença (um avental, uma sequência de fotografias, umas palavras emolduradas) está lá para obrigar as pessoas a olharem para ti. E tu és digno de admiração, repito: és a tua melhor criação. És o texto, o pretexto, o sub, o inter, o supra e o metatexto. É preciso ter uma certa coragem para aguentar com tanta responsabilidade. Estas duas apreciações só aparentemente são contraditórias; de facto são complementares. Uma diz que no meu PRE TEXTO se aponta para um quadrado em demolição ("Este terreno está à venda"); e que a partir daí tudo é possível... Outra diz que a minha instalação não é criticável: ela apenas aponta para mim. As duas afirmações são verdadeiras. Desde a minha instalação na Quadrum ("A Tradição como Aventura", 1979) que ando a proclamar a biografia-como-obra-de-arte; mas lembrarei que à cabeça das várias citações, vinha esta de Maiakovski (em francês, porque não encontrei tradução conveniente): Moi, pour moi, c'est trop peu. Nessa instalação eu procurava já o meu pré-texto. Não vou agora chamar a atenção do leitor para o que Hegel escreveu, fundamental, sobre a consciência infeliz. Acrescentarei só, ao maravilhoso paradoxo de Maiakovski, a palavra também de um poeta, Tristan Tzara: eu sou -- todos o somos - apenas um homem aproximativo: | ||
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Sabes que eu tenho um defeito pavoroso, só vejo as coisas invisíveis, pouco marcadas, não vejo com os olhos de dentro objectos ostensivos e estridentes como aventais. Se vi o avental agora, não foi por ele estar pendurado como Gioconda na parede de uma galeria de arte, sim porque li a palavra num texto, em corpo mínimo, e isso é bem mais discreto do que o objecto de plástico vermelho dito avental. Mas agora que vi finalmente o avental, Zé Ernesto, esse avental borradíssimo de tintas, obra picassiana ou saída das mãos da Rosa Ramalha, se ela pintasse, avental próprio de um trabalhador, fez-se luz no meu espírito justamente para o teu trabalho. Por isso solenemente declaro que nunca conheci ninguém que tanto como tu metesse mãos à obra: tu trabalhavas de sol a sol e de lua a lua, vinte e quatro horas por dia, para conseguires esse prodígio de uma vida inteiramente Arte, um ser e um caminho identificáveis como Arte: nunca me escreveste uma linha que não fosse ou mail-art ou graffiti, nunca disseste nada que não fosse Arte, os teus sonos eram certamente Arte, os sonhos e o amor nas noites prolongadas Arte eram. Se precisasses de apresentar currículo, tinhas trabalhos para muito mais do que a lista telefónica. | ||
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Acho que agora, sim, te conheço, porque nos vi aos dois: José Ernesto de Sousa, primeiro; Ernesto de Sousa, segundo; e De Souza, por excesso, terceiro. | ||