NICOLAU SAIÃO
É assim que se faz a estória
“Hors d’oeuvre” número 1:
Quando a dupla Pierre & Schuster deu por encerradas as atividades surrealistas não fez senão confirmar os t(r)emores de Breton, de que o Surrealismo viesse a ser interpretado unicamente como uma escola datada. Os dois deram cabo da crença de Breton de que o Surrealismo estava mais além.
No entanto, embora parte daqueles que condenaram a dupla, o fizeram de modo a negar a mesma ideia de Breton, ao recusarem o desdobramento evolutivo irrefreável do movimento. Ou seja, aceitavam (aceitam ainda) que o Surrealismo permanecia vivo, desde que não passasse de um reflexo de Breton.
São duas fórmulas grotescas de engessamento. Como sabes, o pior inimigo do Surrealismo foram alguns surrealistas…
Floriano Martins
“Hors d’oeuvre número 2:
CARTA A ANTÓNIO CÃNDIDO FRANCO
Caríssimo António
Tal como o Amigo & Confrade, ando há anos nesta coisa da escrita e da actuação pública por extenso com um sentido de adesão à seriedade e à claridade, pois esta coisa de darmos presença na vida que nos coube viver é algo que tenho por fundacional. Por outras palavras, é isso que nos credita e certifica como seres humanos e não meros tipinhos que visam sim a notoriedade, o lucro, qualquer lucro, e o poder (de preferência discricionário) sobre os outros (que para alguns a escrita é ou tenta ser).
Tenho-o pago por vezes duramente, mas como não tive o azar de ser um fraquitolas, isso não me magoou a não ser de raspão. Continuo pois a achar que vale a pena – além de se ter a espinha direita – considerar, sem fanatismos ou neuroses, que é fundamental existir-se sem truques. (E, como não sou totalmente parvo, tenho a suficiente dose de malícia para agir de forma a não ficar, ante a Estória que me couber, com figura negativa…).
Nem seria necessário dizer isto assim pronunciadamente, pois o António, inteligente como é, precisaria apenas de uma ou duas palavras explicativas.
Daí que se pode e se calhar deve, conclui-se que estas linhas nem são verdadeiramente para si, mas para eventuais futuros leitores que numa tarde futura achem esta folha de papel no alto de um poeirento armário herdado de um tio amantíssimo e que quinou uns dias antes…
Ora bem: como o António sabe, (e das duas uma: ou a actividade de se escrever é coisa séria ou não é), disse o nosso amigo saudoso, o Mário, que “Falta por aqui uma grande razão“, e repeti-o eu ontem, no mail de envio aos confrades e eventuais leitores do “Casa do Atalaião”.
Ou seja: no que diz parte a algo que tem constituído território em que acredito (sem fazer esforço, as coisas viraram-se assim), ou seja, a acção surrealista, a vivência surrealista, que ao contrário do que certos “testemunhas falsas” tentam fazer crer (porque, como burlões que são – e como não têm, por falta de engenho, lugar noutras mesas – julgam a cousa estar a jeito) não é parque para estabelecerem as suas quitandas.
Dentro em breve, pelo nosso amigo e confrade brasuca, vai ser elaborado um amplo volume abrangendo o Japão, américas, a velha Europa…Irá caber uma extensa troca de ideias, na qual procurarei colocar o certo ponto de como é e porque é ora uma realidade, ora um equívoco, ora uma velhacaria, o olhar e a actuação de certos sujeitos sobre o Surrealismo nesta pátria que continua a ser madrasta.
E isto porque acredito que a acção de se escrever não é uma brincadeira de galifões ou uma fórmula de certa gente se coroar de malmequeres (e não digo rosas porque rosas era de mais para esses celenterados).
Sei bem, digo a finalizar, o esforço que noto tem feito para que a realidade da Poesia e da Escrita não seja apenas um jogo de salão ou uma arlequinada de actores medíocres. E por isso o saúdo com o “velho” abraço e, verdade seja, lhe mando esta carta.
Fica com estima o seu, n.
“Hors d’oeuvre número 3”
Por ser de mediana ética ou de mínima razão, faço questão de deixar aqui referido que os “surrealistas” que se têm enroupado com as vestes propugnadas por lenines e trotskys são tão de repudiar como os asseclas de Stalin e do ergástulo soviético e derivados.
Ainda que disfarçados com um pretenso olhar mais aberto, são gentinha da mesma espécie cínica, “idiota útil” ou confusionista e finalmente criminal, de facto do lado dos novos totalitarismos fingidamente progressistas. Breton sentiu-o na pele e acabou por pagar cara interiormente a sua adesão (ingénua? romântica?) a desideratos do “carniceiro de Kronstadt, mais tarde posta de lado. ns
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ENTREVISTA
a Nicolau Saião, por Rui Sousa
01- Em seu entender, o que constitui um autor maldito?
Nicolau Saião – O desnível existente – da sociedade ou de parte dela para o autor ou deste para aquela – entre os respectivos planos da vida quotidiana ou qualitativa.
Concretizando: dum lado a incapacidade de quem rege a sociedade para estar – por incúria ou por disfunção (egoísmo interesseiro, primarismo, prepotência…) – à altura da aventura interior do sujeito, encarado como mero objecto; do outro a impossibilidade deste se conciliar com essa sociedade, tornada relapsa ou criminal quando não despejadamente criminosa. Mas sempre vazada numa cegueira filha do desleixo ético e da menoridade conceptual.
Em suma, a impossibilidade de os dois coincidirem num plano harmonioso e criativo e, nesta medida, gerador de mais elevadas mútuas formulações vitais.
02 – De que forma a marginalidade e a transgressão são traços necessários para uma definição moderna do sujeito artístico?
NS – Numa sociedade capturada pela pequena ou grande infâmia a que os seus próceres de topo recorrem para perpetuar o domínio sobre o homem comum ou, melhor dizendo, sobre os cidadãos que muitas vezes se tornam peças infelizes dessa protérvia habilmente mantida ou descaradamente efectuada, o sujeito artístico – se for minimamente consciente ou normalmente honrado – inevitavelmente terá de estar nesse campo que aqueles aliás tentam minar.
Diria que é uma inevitabilidade. Doutra forma correrá o risco de fazer parte da chamada “légion canaille” que é a que serve (através de ersatz “artísticos”, idos ou não a Versalhes…) os que visam fazer do mundo uma quintarola para os seus caprichos ou festejos galantes.
03 – Concorda com a ideia de que o Surrealismo é um prolongamento da tradição romântica?
NS – De forma alguma.
Vejamos: a inflexão surrealista existiu sempre, dos primórdios da vida até aos nossos dias conforme a História nos mostra. Desde o tempo das cavernas até aos dias de hoje (e continuará pelo futuro adiante).
O que o romantismo fez foi levar até um dado ponto, dando-lhe foros de cidadania, esse sentir pulsante duma parte do inconsciente pessoal ou colectivo que até então estava ausente do imaginário artístico e mesmo existencial quotidiano. Mas ainda se prendia a uma obrigatoriedade de estilo ou de pensamento, posto que pelas melhores razões (mau grado os tropeços nefelibatas). Afastava-se, devido a condições próprias e no intuito de quebrar o pseudo-classicismo e o academismo, do realismo, nomeadamente daquele que legitimamente podia aprofundar uma visão mais adequada do mundo e da sociedade.
O surrealismo, pelo contrário, exerce-se na totalidade da vida e da concepção real ou metafórica do espírito, efectivando pois uma incursão destemida nesses continentes.
Nessa medida, ultrapassa as fórmulas que certa gente ignorante ou maldosa lhe tenta colar, normalmente visando esvaziá-lo do poder transfigurador que lhe é próprio.
E se o surrealismo reconhece nesse irmão mais velho ou primo próximo o gesto de ter habitado os castelos da imaginação, viaja por seu turno mais além nos mundos muito palpáveis que vão das florestas do conhecimento aos caminhos entre os universos estelares que o romantismo compreensivelmente desconhecia.
04 – Como definiria as características fundamentais de uma poética de vanguarda?
NS – Em primeiro lugar, ela reconhece-se pela capacidade de negar o habitual, o convencional exarado e mantido pelos que vêem na arte uma espécie de luxo para terratenientes mentais e não uma incursão no mistério e no sagrado não fideísta que a Vida é.
Depois, pela ultrapassagem das fórmulas confortáveis – por pretensamente modernas que elas se considerem.
Tem sempre uma atitude crítica, mas não pedante nem cínica. Age de boa-fé nessa tentativa de saber fazer. Visa vogar em pleno mistério, não para se encandear por essa luz e deixar de ter um olhar claro mas sim para conquistar um continente mais para o conhecimento, antecâmara eventual da possível sabedoria.
05- Quais são, a seu ver, os mais relevantes precursores do Surrealismo, em termos internacionais?
NS – Creio que é pacífico dar relevo a certos nomes consensuais. Eu não os infirmaria: Gustave Moreau, o Vítor Hugo da “boca de sombra”, Holderlin, Blake, Nerval, Rimbaud, Petrus Borel, Aloysius Bertrand, Achim von Arnim, Lewis Maturin, Carroll, Young, Novalis, Jensen, o douanier Rousseau, Lautréamont…
Ou seja, todos aqueles em que a presença do fantástico, do humor negro, do maravilhoso e do real transfigurado pela suscitação da aventura de viver permitiu observar para além dos olhos os factos essenciais da escrita e da pintura sem fronteiras.
06- Que nomes salienta como fundamentais para o Surrealismo em Portugal?
NS – Refere-se a nomes que em Portugal representem o mais lídimo da prática surrealista escrita e pintada? Se assim é e sem preocupações de ordem: Cesariny, Pedro Oom, António Maria Lisboa, Cruzeiro Seixas, João Rodrigues, Manuel de Castro, Lud, Mário Henrique Leiria, Paula Rego, António Areal, Henrique Risques Pereira, Carlos Eurico da Costa, Isabel Meyreles, António Dacosta, Eurico Gonçalves, Mário Botas, António Quadros…
E por aqui me fico, sem ir mais longe.
07- A seu ver, qual a importância da tradição literária portuguesa para uma especificidade nacional do Surrealismo?
NS – Não quero ser corrosivo, mas com o devido respeito eu falaria de importância negativa…
A meu ver, essa tradição possui um certo pendor para o lirismo exacerbado, a recusa ou pelo menos uma certa cegueira ante o mundo da Ciência, o repisar de ideias feitas, o provincianismo de escola, a ligação ou o domínio consentido duma mentalidade de sacristia… E, sem acinte o digo, quando se fala em tradição literária portuguesa geralmente o que desta expressão se solta é a tipicidade que pode existir num povo que parece ter ficado exausto após os Descobrimentos… E essa característica de nunca ter sido um povo realmente livre reflectiu-se necessariamente nas letras e nas artes, capturadas por uma certa amargura, um certo ressentimento que com frequência demasiada buscava amparo ora na “religiosidade”, ora no desespero funesto, ora na sobranceria insensata.
08- Quais os autores portugueses que, a seu ver, mais influenciaram os nossos autores surrealistas?
NS – No meu caso pessoal, fui muito pouco tocado por autores portugueses precursores. Só os li mais tarde, geralmente bastante tempo depois de por volta dos 14 anos, numa revista brasileira que achei por acaso, ter dado de chofre com autores estrangeiros nos quais reconheci a inflexão que me suscitava sem saber que tal tinha nome. E que passei a seguir com atenção, estendendo depois a minha leitura a autores contemporâneos.
Se bem interpreto a sua pergunta e no que respeita a nomes que podem ter dado antecedentes ao surrealismo em Portugal, tenho para mim que, lá de fora, seriam todos aqueles que citei na anterior resposta.
Quanto aos lusos, não sou capaz de salientar outros que não sejam algum Gomes Leal, Teixeira de Pascoaes e Raul Brandão, Camilo Pessanha, algum Sá-Carneiro, algum Garrett, certo Antero de Quental, algum Eugénio de Castro…(Pessoa, esse, está do outro lado do espelho).
09- A seu ver, quais as raízes da presença surrealista em Portugal?
NS – Como já referi, a inflexão do surrealismo existiu sempre. No que se refere à sua concatenação (para assim me exprimir) ou exposição pública em grupos organizados, após o seu surgimento em 1924 na França difundiu-se pelo mundo (quando não surgia noutros lugares paralelamente…) respondendo a uma necessidade vital de autores e de pessoas por extenso. Em Portugal, devido ao reaccionarismo, atraso e concomitante repressão existencial e mesmo política – o país era forçado a viver isolado do mundo geográfico e espiritual – revelou-se tarde e sempre entravado pelas razões ali atrás ditas.
A presença surrealista, em grupo ou individualmente, continuará sempre a existir, mau-grado as tentativas de ocultação ou extinção que sobre ela façam pender e que começam sempre pela tirada cínica de que “o surrealismo existiu em tal data e até dada altura e depois acabou”.
O que visam os que assim falam é verem-se livres duma presença incómoda que lhes relembra, ou mostra mesmo, a sua falta de caracter, a sua desonestidade intelectual e com terrível frequência a sua mediocridade artística. É, portanto, um gesto político de cariz autoritário/totalitário o que essa gente encena e encarna. Tal tem-se visto à saciedade!
10- A seu ver, quando podemos falar da presença do Surrealismo em Portugal, enquanto acção colectiva?
NS – Nos anos consabidos, na época, que a História consagra – quando Cesariny, Oom, A.M.Lisboa e todos os outros que com estes estavam altiva e nobremente, ergueram a luz surreal nos seus escritos e nas suas obras plásticas. Recusando empáfias de cultores empenachados ou equívocos. O tempo que deixou lastro e que segue counting and counting…
11- O que pensa dos nomes associados ao Grupo Surrealista de Lisboa, como António Pedro, Alexandre O’Neill e Fernando Lemos?
NS – António Pedro foi uma espécie de equívoco, ora dele ora dos outros, no que diz parte ao surrealismo. (Mas Breton não se equivocou: indo AP, em Paris, assinar um manifesto do grupo surrealista, Breton cortou com um firme traço a sua assinatura na folha constante).
Para ele o surrealismo devia ser uma espécie protegida, tal como todas as outras correntes artísticas o deveriam ser num mundo em que vigorasse uma respeitabilidade que ele julgava dever vestir as artes e os artistas, que a seu tempo e portando-se bem seriam então provavelmente academizados. Nunca percebeu que o surrealismo é uma aventura interior que não se mede por boas-maneiras ou por falta delas, por respeitabilidades sociais/artísticas ou por destrambelhamentos, mas que está fora e para além desses figurinos sociais de pessoas de bem ou de mal – uma vez que o seu cerne é sim a liberdade de criar sem obrigatoriedade de apresentar cartões, diplomas ou quaisquer certificados.
Fernando Lemos, por seu turno, foi um artista que por natural sensibilidade deu por si durante algum tempo a efectuar coisas com pendor surrealista. No entanto, como é referido por uma ensaísta que sobre ele se debruçou, “desenvolveu na década de 60 e posteriormente, na sua produção pictórica, princípios de composição plástica que conduzem à afirmação de um abstracionismo concreto, definido pela presença e sobreposição de formas negras […], que muito se distinguiu das referências visuais e das atmosferas surrealizantes que pautaram as suas primeiras obras“.
Quanto a O’Neil, praticou o surrealismo de forma empenhada e realizada durante o tempo em que problemas pessoais e de ordem societária não o feriram, levando-o a orientar-se nos meandros da publicidade e da escrita mais controlada e cerzida por companheirismos pessoais e literários ou necessidades de sobrevivência.
(Um exemplo mais, que ilustra outra vertente do vector surrealizado desses tempos: Vespeira, que produziu primeiramente obras dentro do chamado neo-realismo (nome que em Portugal recebeu o movimento que exprimia as concepções literárias/plásticas do comunismo soviético), atravessando depois um período em que se vazou no surrealismo pictórico. Mas que tempos depois abandonou, devido à sua formação ideológica tê-lo transportado para outras paragens mais consentâneas com ela).
12- Com que autores surrealistas conviveu, ao longo dos anos?
NS – Intensamente com Mário Cesariny, Ludgero Viegas Pinto (Lud), Carlos Martins e João Garção. Frequentemente com Pedro Oom, Ernesto Sampaio e, nos últimos tempos, José Carlos Breia e Joaquim Simões. Algumas vezes só, ainda que com cordialidade marcada, Cruzeiro Seixas, Eurico Gonçalves, António Barahona da Fonseca e outros do surrealismo abrangente pós grupo do Gelo como Mário Botas ou Luiza Neto Jorge. Também frequentemente, embora com flutuações, com autores do surreal-abjeccionismo ou perto dele como Virgílio Martinho, Ricarte-Dácio, Pacheco menos vezes por decisão pessoal minha; também, com figuras próximas como Herberto Helder ou Hermínio Monteiro.
Actualmente, do Brasil, com dois autores fundamentais deste tempo, Floriano Martins e C.Ronald. Do estrangeiro, variada e intermitentemente, como Emílio Adolpho Westphalen, Gérard Calandre, ultimamente e de forma epistolar Jules Morot e Alfonso Peña…
13- Qual a importância de Pedro Oom no desenvolvimento do movimento surrealista em Portugal?
NS – Foi importante não só pela sua obra, não só pelos contactos suscitadores que teve e que estabeleceu com António Maria Lisboa e outros – os primeiros e alguns que lhes sucederam – mas também pela sua postura: exigente mas aberta, corajosa nos embates com os zoilos e fraternal com os companheiros, cumprindo assim a frase muito lúcida dum confrade que disse “Chama-se UM HOMEM àquele que sabe o que está fazendo”. Foi, para tudo dizer, não só o autor actuante de “Um Ontem Cão” ou “O homem bisado” mas também o que soube referir que, numa dada perspectiva de verticalidade, “Pode-se não escrever” e, ainda, o que soube entender que em relação a um agregado societário infame filho duma sociedade desqualificada e torpe é mais importante um olhar de comiseração e até de fino desprezo do que a feitura de coisas picturais e escritas alevantadas…
14- Em sua opinião, a que se deveu a intrínseca tendência para a dissidência entre os surrealistas portugueses?
NS – A informação que do estrangeiro chegava aos primeiros (e se calhar até aos segundos…) surrealistas era muito parcelar e frequentemente confusa devido à situação de ausência de liberdade política em que o país vivia. Acresce que no terreno europeu e local se digladiavam por essa época pelo menos duas tendências de sinal contrário mas ambas – como hoje já não cabe duvidar – igualmente nefastas: o conservadorismo, colorido de catolicismo reaccionário e o fascismo vermelho de cariz estalinista, autoritário mas cobrindo-se com a falsa capa de progressista de esquerda. Os surrealistas tiveram de sofrer as acções imperativas, muito impetuosas e claramente prepotentes, dessas duas formulações ideológicas. E, por razões que hoje bem se conhecem, muitos dos que agiam dentro do reduto surreal foram seduzidos ou sitiados algumas vezes por essas feitiçarias sociais, o que dava azo a que os menos permeáveis tivessem de se afastar ou afastar os que os queriam jungir a obrigatoriedades que eles achavam espúrias.
Mas o mesmo sucedeu em França, por exemplo, onde o sentir soviético foi bem acolhido por Aragon, Unik, Éluard e outros com os resultados tristes que se sabem. Não devemos esquecer que para os próceres de Leste (e os seus avatares) o que contava e conta é não a liberdade interior com todo o seu acervo fulgurante de criatividade solar ou mesmo lunar – digamos assim com a suficiente dose de ironia – mas o que um determinado hacer pode dar à potência política do partidão.
Daí a necessidade de, contra essas gentes, dissidir, romper amarras, de não estar na quadra.
15- O que entende por Abjeccionismo?
NS – A atitude galharda, deliberada e na verdade muito adequada de responder ponto por ponto e sem delicadezas mais próprias “de damas putas” (sic) à protérvia social, repelente e abjecta ela sim, que tentava enroupar-se de lirismos delicodoces e nos palavrórios burlões filhos da pedantice e da hipocrisia de certos barões assinalados das artes, das letras e, por extensão, da praça que punha e dispunha nos jogos malabares da desgraçada nação.
Ela tinha consciência do seu pouco poder, mas mesmo assim não desistiu de falar alto e claro tanto quanto podia, despertando embora as mais diversas cóleras e até perfídias.
16- Considera que nomes como Antonin Artaud, Georges Bataille, Henry Miller, Dubuffet, Henri Michaux ou Jean Genet foram importantes para a definição do Abjeccionismo?
NS – Que são autores de qualidade, de grandeza específica, não cabe dúvida. E que inquestionavelmente têm neles a inflexão abjeccionista expressa em obras e em vivências é facto assente.
Agora: não sei é a influência que terão tido no caso português. Não a consigo, confesso, definir com exactidão.
No que me diz respeito não a tiveram especialmente, li-os, apreciando-os, como li outros autores: Leiris, Camus, Jean Ray, Hans Carossa, Bruno Schulz, Samuel Beckett, Ionesco, Oscar Panizza…
17- Como poderia descrever a acção do grupo ligado ao Café Gelo?
NS – Tanto quanto sei e é dos livros, mas também do que aqui e ali pude saber pessoalmente, foi um grupo que, vindo do antigo Café Hermínius a que se juntaram outros confrades, tentou levar a efeito uma actividade surrealista e abjeccionista que, na verdade, não podia existir com foros de eficácia no país cimentado pelo salazarismo e onde havia duas espécies de censuras: a oficial e a do partidão que tentava herdar-lhe, a seu tempo, as quintas e os bragais…
18- Que figuras salienta de entre aquelas que se costumam associar a esse contexto?
NS – Além de Cesariny e Pacheco – Manuel de Lima, José Escada, Herberto Helder, José Sebag, Manuel de Castro, António José Forte, Mário-Henrique Leiria, Ernesto Sampaio. Outros ainda, como António Barahona da Fonseca, Gonçalo Duarte, René Bertholo…
19- Existia uma dimensão performativa na actuação de grupo, intrinsecamente marginal, dos abjeccionistas?
NS – É de crer que sim, mas sempre entravada pelas circunstâncias que se conhecem historicamente e a que já aludi. Em campos onde existe a obrigatoriedade de agir conforme o Estado determina, ou sujeita a controle, as acções têm muito pequenas possibilidades de se promoverem e de permanecerem no terreno das realidades efectivas.
20- Luiz Pacheco é uma personagem singular no quadro do Surrealismo-Abjeccionismo em Portugal. Qual a sua opinião acerca das diferentes vertentes da sua acção?
NS – Singular, sim. Tanto pelo que fez de muito positivo – editando obras de grande qualidade; definindo como burlescas ou simplesmente irrisórias muitas figuras armadas em arco da patusca ou aflautada circunstância nacional e, ainda, escrevendo textos excelentes entre a crónica e a ficção – como pelas encenações em que se verteu, de forma quase clownesca; dando, aos inimigos da liberdade inteira, excelentes armas de arremesso que eles utilizavam com veloz contentamento…
21- Considera que existem ligações entre o Surrealismo e movimentos marginais contemporâneos como a Geração Beat norte-americana ou os Angry Young Man ingleses?
NS – Eu não diria tanto ligações como pontos de contacto. Pontos de contacto, principalmente, de concepção. Não esquecendo que houve actores do movimento beat que se reconheceram como surrealistas, na escrita e na actuação por extenso.
Os segundos tocariam o mundo surreal pela sua recusa de um conformismo muito british, pela sua negação dum mundo literário que se enquadrara pelo uso de fórmulas que já estavam velhas e relhas ou, pelo menos, desajustadas das realidades sociais que importava certificar.
22- Que outros herdeiros o Surrealismo deixou em Portugal, colectiva e individualmente?
NS – Assumidamente ou não, todos os grupos de poetas e pintores que souberam efectuar neles e no grupo a que se devotaram, com originalidade, o gesto surreal de recusa do já percorrido ou visto; indidualmente, a independência de espírito e a procura incessante de um universo onde não tenha lugar a prepotência de sectores ou a submissão à retórica de falsos amigos do Homem.
23- Qual a importância do Surrealismo no contexto português?
NS – Como já afirmei algures, nas últimas três décadas, pelo menos, os que fazem a chuva e o bom tempo nos lugares expressos da nação intelectual têm-se esforçado por afastar e exterminar a inflexão surrealista. À partida, querendo fazer crer que já não é tempo dela, como se fosse uma fruta ou um legume de específico mercado…
Por ela ser a prova provada do seu deles falhanço enquanto manajeiros da sociedade nacional? Por o surrealismo conter nele algo que lhes é muito hostil, que eles sentem como muito hostil por ser o contrário luminoso e iluminante das suas pessoínhas abancadas à manjedoura do Poder ou da notoriedade?
Penso que sim.
Mas também pelo seu primarismo cultural disfarçado, pela sua clara incultura – encarando-se cultura viva como aquela força que permite que se perceba, simbolicamente falando, que o ser humano está muitos passos além do símio – pelo seu cinismo que encara a arte e a liberdade inteligente como meros resíduos que não concorrem para o bem-estar que eles apenas e incessantemente procuram haver, mesmo que para isso tenham que exterminar a elementar decência.
Nesta medida, se por um lado o surrealismo lateja claramente no imaginário social (basta falar-se com as pessoas do povo orientadamente para se perceber isso) devido à defenestração que sobre ele tem caído conta muito pouco, muitíssimo pouco porque quase não pode exprimir-se de forma digna ou pelo menos aceitável. Ainda recentemente houve uma acção referente ao surrealismo e, note-se, levada a efeito por gente universitária de bom quilate. Pois a denominada “comunicação social”, tanto quanto soube, irrelevou o mais que pôde tal acontecimento, ela que dá normal relevo a patacoadas ou actividades roçando o pornográfico e/ou a imbecilidade satisfeita.
E creio que não é preciso dizer mais, nomeadamente o facto de que acções, no país e no estrangeiro, protagonizadas por surrealistas daqui ou vizinhos deles são normalmente abafadas, desprezadas ou postas do lado da sombra.
Ou seja, dantes eram atacados publicamente. Agora, muito pior, tenta-se fazer crer que nem existem. É, claro, o cripto-fascismo de fachada democrática no seu melhor…!
ns