Entrevista a Adelto Gonçalves

RIVALDO CHINEM

Nova obra de Adelto Gonçalves refaz a história de São Paulo


Rivaldo Chinem foi repórter na Folha de S. Paulo, revista Veja e O Estado de S. Paulo, tendo colaborado na imprensa alternativa (Opinião, Movimento, Versus e Repórter). É autor de Terror Policial, com Tim Lopes (Global); Sentença: padres e posseiros do Araguaia (Paz e Terra); Imprensa alternativa: jornalismo de oposição e inovação (Ática); Marketing e divulgação da pequena empresa (Senac); Assessoria de imprensa –– como fazer (Summus); e Jornalismo de guerrilha: a imprensa alternativa brasileira da censura à Internet (Disal), entre outros. E-mail: rivaldochinem@yahoo.com.br


SÃO PAULO – Foram raros os livros de História do Brasil que chegaram às livrarias tão bem recomendados quanto O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797, de Adelto Gonçalves, publicado ao final de 2019 pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp). Afinal, o prefácio foi escrito pelo historiador britânico Kenneth Maxwell, professor (aposentado) da Universidade de Harvard e autor de A Devassa da Devassa: a Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal – 1750-1808 (1977), enquanto o texto de apresentação coube ao historiador Carlos Guilherme Mota, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP).

Adelto Gonçalves, 68 anos, é jornalista desde 1972, quando começou a trabalhar no extinto jornal Cidade de Santos, do grupo Folhas. Tem passagens pelos jornais A Tribuna, de Santos, O Estado de S. Paulo e Folha da Tarde e pelas editoras Abril e Globo.

Doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela USP, é mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela mesma instituição. Seu trabalho de doutorado Gonzaga, um Poeta do Iluminismo, sobre o poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), foi publicado em 1999 pela Editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, com prefácio do poeta e diplomata Alberto da Costa e Silva, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL).

Em 1999, com bolsa de pós-doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp), desenvolveu, em Portugal, projeto sobre a vida e obra do poeta Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805), publicado em 2003 pela Editorial Caminho, de Lisboa, sob o título Bocage: o Perfil Perdido, com prefácio do professor Fernando Cristóvão, da Universidade de Lisboa.

Foi professor da Universidade Paulista (Unip), no curso de Direito, e da Universidade Santa Cecília (Unisanta) e Universidade São Judas-Unimonte, nos cursos de Jornalismo, em Santos. É autor de Mariela Morta, contos (Ourinhos, Complemento, 1977), Os Vira-latas da Madrugada, romance (Rio de Janeiro, José Olympio, 1981; Taubaté-SP, Editora Letra Selvagem, 2015), Barcelona Brasileira, romance (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2003), Fernando Pessoa: a Voz de Deus, artigos e ensaios (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Tomás Antônio Gonzaga, estudo biográfico-crítico (Rio de Janeiro/São Paulo, ABL/Imesp, 2012); e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial – 1709-1822, ensaio histórico (São Paulo, Imesp, 2015). Ganhou os prêmios Assis Chateaubriand de 1987 e Aníbal Freire de 1994 da ABL. Em 2013-14, com bolsa da Unip, desenvolveu o projeto que resultou no livro O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797. Foi para discutir aspectos dessa obra que concedeu a seguinte entrevista.


Pergunta – Em linhas gerais, de que trata o seu novo livro?

Adelto Gonçalves – O livro procura analisar os nove anos do governo Lorena (1788-1797), mostrando a atuação do governador e capitão-general d. Bernardo José Maria da Silveira e Lorena (1756-1818) para conciliar os interesses da metrópole com as reivindicações das lideranças locais que, não raro, viam com reservas os representantes da Coroa. É de se lembrar que Lorena recebeu uma capitania mais organizada do que os seus antecessores e soube sobretudo aproveitar-se disso para colocá-la numa situação mais favorável em relação às demais. Em pouco tempo, a capitania paulista ganhou maior importância política e econômica, como prova o papel de destaque que teve na gestação do processo que resultou na separação do Brasil de Portugal. É de se ressaltar que o período anterior sempre foi apontado por contemporâneos e historiadores mais antigos como de extrema miséria e de obscurantismo na história da América portuguesa, que coincide com a perda de sua autonomia em 1748, depois de ter alcançado uma situação de destaque, à época da capitania vicentina, como centro propulsor da penetração para o interior da América, o que se deu a partir da descoberta das minas de ouro. Este trabalho contesta e relativiza essa visão, mostrando que essa ideia, provavelmente, fazia parte de uma estratégia política das elites contemporâneas para reivindicar melhorias, pois esse quadro não se justifica.

Pergunta – Quer dizer que São Paulo já era uma capitania importante a essa época?

Gonçalves – Ao contrário do que a historiografia tradicional sempre defendeu, a capitania de São Paulo não vivia isolada nem tampouco estava despovoada, sobrevivendo de uma economia de subsistência, à época da chegada do governador d. Luís Antônio de Sousa Botelho, o morgado de Mateus (1722-1798), em 1765, quando deixou de ficar adjudicada à capitania do Rio de Janeiro. Esse período que se iniciara em 1748 sempre foi visto por historiadores mais antigos, como Roberto Simonsen (1889-1948) e Caio Prado Júnior (1907-1990), como de completa decadência e isolamento em relação às demais regiões da América portuguesa, em comparação com as capitanias do Nordeste e da zona de mineração, que apresentavam padrões de crescimento superiores. Hoje, esse conceito tem sido revisto ou relativizado, ao reconhecer-se que, se São Paulo não dispunha de uma economia pautada na grande lavoura monocultura e escravista nem na extração mineral, teve participação decisiva no avanço em direção ao Oeste e à descoberta das minas de ouro ao final do século XVII, além de, geograficamente, localizar-se no entroncamento de importantes circuitos regionais, terrestres e fluviais. E que esse fator continuou a pesar decisivamente no rumo do desenvolvimento da capitania.

Pergunta – Então, não houve decadência econômica nesse período?

Gonçalves – Não se pode admitir que a capitania, entre os anos de 1765 e 1822, tenha passado por enfraquecimento político ou decadência econômica, já que, no período, além de aumento demográfico, a capital continuou a atuar como peça-chave das principais vias, fluviais e terrestres, mercantis e de comunicação, o que sempre tendeu a fortalecer o circuito vicinal de comércio, ou seja, a economia de abastecimento local. Quer dizer: a economia da capitania de São Paulo sempre esteve baseada na comercialização dos produtos, servindo como entreposto de cargas. Até porque a lavoura praticada na região era feita em pequenas propriedades, sem larga escala, voltada mais para o abastecimento local e não para a exportação. A mão de obra escrava majoritária tampouco vinha da África, mas do elemento local, ou seja, o indígena capturado nos sertões. Enquanto as demais capitanias localizadas à beira do Oceano Atlântico concentravam seu interesse no tráfico com Portugal, especialmente para a venda da produção canavieira, os moradores do planalto de Piratininga estavam preocupados com o sertão inexplorado e as riquezas que poderiam encontrar. Por isso, quando chegou para exercer o seu primeiro triênio, Lorena não encontrou uma capitania depauperada ou isolada, mas em desenvolvimento. E tratou de dar continuidade a uma política de fortalecimento de sua economia.

Calçada do Lorena, na Serra do Mar: ruínas podem ser acessadas por turistas durante visitas previamente agendadas

 

Pergunta – O período de Lorena em São Paulo coincide com a conjuração de 1789. Houve desdobramentos da Inconfidência Mineira em São Paulo?

Gonçalves – Pode-se dizer que os ecos da Inconfidência Mineira não repercutiram na capitania vizinha. Isso se explica pelo fato de que a conjuração de 1789 não passou de conversações à meia voz. Foi urdida com o apoio de grandes magnatas, arrematantes dos direitos e rendas, que, ao desviarem o que haviam arrecadado em nome da Coroa, tinham-se tornado grossos devedores, na terminologia da época, ameaçados de expropriação sumária. Até então, tinham contado com a boa vontade dos capitães-generais e governadores e dos ouvidores, que, certamente, levavam algumas vantagens para fazer vistas grossas. Esses arrematantes queriam se ver livres das dívidas com o erário régio, mas, ao mesmo tempo, eram aqueles que tinham condições econômicas para apoiar uma revolta com homens, armas e pólvora. Um deles era o delator Joaquim Silvério dos Reis, que, diante da demora para a eclosão da revolta, pulou para o outro lado e entregou os conspiradores. Tudo em nome do perdão de suas dívidas. Vista assim, a história da Inconfidência Mineira perde o seu glamour, mas isso já está exposto em meu livro Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (1999). Acontece que, no início da República, a história da Inconfidência se tornou fundação da identidade nacional e, hoje, contada assim, principalmente em Minas Gerais, não tem muita aceitação. Mas, infelizmente, é o que mostram os documentos de arquivo. Mais: em São Paulo, as elites não tinham motivos de descontentamento com a Coroa, pois estavam afinadas com o governador Lorena. Tanto que, em abril de 1791, os camaristas de São Paulo escreveram à rainha d. Maria I (1734-1816) pedindo a permanência de Lorena por mais um triênio e, naquele mesmo ano, o governador seria homenageado com uma sessão literária na Câmara, com a leitura de odes e orações em sua homenagem.

Pergunta – No texto escrito para as “orelhas” do livro, o historiador Carlos Guilherme Mota diz que essa sua obra se diferencia por ser um estudo bem estruturado e inovador, baseado em fontes documentais sólidas e bem escrito, “sem os modismos e generalizações muito comuns em certa historiografia que trafega na superfície dos acontecimentos, marcada pelo pitoresco”. Em que seu livro se destaca em relação a outros de História também escritos por jornalistas?

Gonçalves – Creio que isso se dá porque, embora como jornalista saiba escrever um texto direto e agradável, sou não só um estudioso da Literatura Portuguesa como um historiador rigoroso, pois sempre que posso estou imerso nos arquivos. Ou seja, dificilmente, faço citações com base em livros impressos porque, se um historiador do século XIX, por exemplo, fez alguma citação errada, o equívoco acaba por ser repetido indefinidamente. O fundamental é ir direto às fontes, aos documentos da época, que estão nos arquivos de Portugal e do Brasil. E evitar um olhar anacrônico sobre fatos e comportamentos, apresentando personagens históricos como bufões, pois é daí que surge essa ênfase no pitoresco, naquilo que hoje pode soar como engraçado e atrair leitores incautos.

Belvedere e Padrão do Lorena em homenagem ao construtor da Calçada: monumento erguido à época do governo Washington Luís (1926-1930)

 

Pergunta – Portanto, o livro não se resume apenas ao período de Lorena?

Gonçalves – Exatamente. Para se ter uma ideia mais precisa de como estava a capitania à época da chegada de Lorena em 1788, tive de fazer um resumo de quase 70 anos da existência da capitania de São Paulo, a partir de 1720, quando de sua criação com o desmembramento de Minas Gerais de seu território. Para tanto, tive de corrigir alguns equívocos registrados em livros impressos antigos.

Pergunta – Quem era Lorena?

Gonçalves – Lorena era filho adulterino do rei dom José (1714-1777). Ele teve sua importância. Como governador teve uma visão futurista ao estabelecer o porto de Santos como porto único. Prejudicou os demais portos da capitania, como Cananeia, São Sebastião e Paranaguá, bem como o do Rio de Janeiro, porque as mercadorias tinham de pagar o imposto em Santos, mas com isso aumentou a arrecadação. De maneira autoritária, baixou uma determinação que ficou conhecida pela historiografia de forma inadequada como “lei do porto único”. Afinal, não se tratava de uma lei, pois não fora assinada pela rainha, mas de uma decisão do governador. Essa determinação procurava facilitar a descida da produção de açúcar do interior da capitania, direcionando-a para o porto de Santos, atendendo aos interesses da elite agrária. Além disso, o governador mandou construir uma via pavimentada com pedras, a primeira da América Latina, que passaria para a História como Calçada do Lorena. Antigamente, esse percurso na Serra do Mar, na altura de Cubatão, havia sido um caminho de índios que os tropeiros seguiam, com o açúcar indo no lombo das mulas. Foi a partir daí que São Paulo deu um salto.

Pergunta – O que mais se pode dizer de Lorena?

Gonçalves – Ele era muito ligado ao capitalista Jacinto Fernandes Bandeira, grande negociante de Lisboa, que tinha livre acesso ao governo no Reino e passara a cuidar de seus negócios particulares em Portugal. Em contrapartida, Lorena facilitava os negócios de Bandeira com a América portuguesa. Ou seja: a venalidade constituía uma prática corriqueira, pois, embora por lei o governador e capitão-general não pudesse fazer negócios particulares, acabava para fazê-lo por interpostas pessoas. Lorena seguia também a orientação de Martinho de Melo e Castro, ministro da Marinha e do Ultramar entre 1770 e 1795, que procurava diminuir a influência dos traficantes fluminenses de escravos, que já haviam estabelecido relações altamente lucrativas nas possessões portuguesas na África. Não obteria êxito porque, a essa altura, já houvera uma inversão na relação reino-colônia, ou seja, a América portuguesa já era economicamente mais poderosa que Portugal.

Adelto Gonçalves, jornalista e escritor, doutor em Letras pela USP: São Paulo jáera uma capitania importante à época do governo Lorena

 

Pergunta – E da vida privada de Lorena, o que se pode dizer?

Gonçalves – Da vida privada de Lorena, há registros posteriores, ditados pela tradição oral, mas não corroborados por documentos de arquivo, segundo os quais ele e sua comitiva eram gente que não poupava a violência quando falsas promessas e astúcias não bastavam para a corrupção de donzelas incautas. Diziam que, à noite, ele costumava invadir sorrateiramente os quintais das propriedades próximas à casa do governo atrás de donzelas.  Tendo 32 anos de idade ao chegar a São Paulo, Lorena era solteiro e logo manteria duas amantes paulistas que atuariam como intermediárias em muitos negócios do governo. Depois de São Paulo, Lorena foi governador e capitão-general de Minas Gerais e, em 1807, tornou-se vice-rei da Índia, ficando lá até 1816. Voltou para o Rio de Janeiro, onde morreu em 1818.

ADELTO GONÇALVES
O Reino, a Colônia e o Poder:
o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo
408 páginas, R$ 70,00, 2019.
Site: www.imprensaoficial.com.br.

Fotos: Luiz Nascimento


ADELTO GONÇALVES