Entre águas índico-atlânticas

MANUEL SANTOS


Ao Eugénio Lisboa
e à Maria Antonieta

entre águas índico-atlânticas

dois reinos que tanto sublimastes

 

da âncora de memórias

caliban e luso

estranhos irmãos

soltam velas utopias adentro


na ribeira de caparide, num re

canto do canavial,

uma elegante silhueta cinzenta

fixa a corrente caudalosa da intempérie.

dou a volta a espiar entre silvas

imóvel no espanto.

súbito

num impulso seco levanta voo

a imponente garça-real


os apóstolos de jesus lançam as redes e apanham tudo.

os discípulos das redes sociais apanham algum peixe e muito peixe miúdo.

corto maltese continua indiferente aos lugares e pessoas

e é rasputine quem lhe lança as questões mais inquietantes.

os pássaros continuam a pairar sobre os homens.


os pássaros saciam a sede na poça súbita.

abençoada chuva prometida!

lavam as penas e penas partilhadas

tantos meses por tantos bichos,

mesmo os inmigos gatos.

mesmo a tempo, agora que as câmaras

racionam as regas nos jardins.

racionemos também a estupidez,

os bichos renovarão os ciclos.

 

a água canta na cascata.


às vezes o canto dos pássaros é prenúncio de morte.

até os césares o sabiam. não sei se o canto

que ouço na madrugada é anúncio de morte de mágoas,

césar de uma manhã limpa. as aves trocam-me

as voltas, num voo circular ao deus do vento.

os augures já não são o que eram. temos nós que

decifrar os sinais de um sorriso ou de um esgar.

é duro. mas se for dum regato límpido como um sonho,

o voo das aves ainda vai a tempo de ser desvendado.


chego a casa.

erro de ligação no plasma.

liga desliga avança recua

porra para o último modelo! penúltimo ou antepenúltimo

 

ponho um cd de billie holliday e lester young

puxo de um cigarro

e aspiro uma fumaça de libertação

 

(mas porque é que a oms não obriga a retirar os químicos do

tabaco?

o seu fumo prejudica os seus filhos família e amigos

fumar provoca lesões nos seus dentes e gengivas)

 

 

puxo doutro cigarro

pego numa folha e em lápis

ah bendita avaria tecnológica! conserto o interior

e consigo na hora uma ressonância magnética dos neurónios.

revela despersonalização multidimensional da sociedade.

 

aparo as borras do alcatrão e do carbono

e escarafuncho o relatório da home art


o gato coxeia sem pousar a pata direita

pára a meio do penhasco olhos verdes magnéticos em mim

 

já o vira descer há meia hora

para tanto esforço as três patas talvez fosse pescar aos

despojos dos veraneantes

 

desvio o olhar sobe o resto das pedras e esgueira-se por onde viera

negrura do pêlo colada à sorte talvez a prefira à quentura

peganhenta dum dono

 

o tempo o sal os deuses curarão a sua pata

o dono a comida enlatada os veterinários esvaziarão de

magnitude o verde

 

desvio o olhar cada um vai à sua vida

levo o magnetismo de antes subir a três patas que porem a pata

em cima


pessoa já chegou ao supra sumo do comércio

aluga-se o quarto a turistas e outros pacóvios

supostamente julgam que ele passou naquele quarto

a parte mais importante da sua vida e até a máquina de

escrever supostamente foi a privilegiada do matraquear dos dedos

nas teclas inspiradas (embora depois o dono do quarto

conceda num arrobo de honestidade

que pelo menos seria muito parecida)

santo pessoa que dás de comer a tanta gente

e nessa casa curtiste a privação duma empresa falida ou

fodida como agora os que te continuam a foder

durmam durmam tranquilos num affaire com o poeta

quando acordarem

privilegiados pela alma superior que vos aconchegou os sonhos

poderão enfim partilhar nas redes sociais

a vossa antípoda estupidez do vosso verdadeiro heterónimo


contentores amontoados guardam o quê?

de que cantos vieram a que cantos vão?

ensejos desgraças presentes embustes.

um-dó-li-tá um segredo coloreto

quem está livre livre está

escolho a laranja

aportou talvez à meia-laranja

da minha cidade longos dias índico-atlânticos

 

sândalo das maresias no contentor do coração


caixas por abrir caixões por fechar

eternamente perdidos nas dimensões indimensionáveis

sim há os que se fecharam numa redoma

confortavelmente pensam sem cheirar as nuvens

e há as flores

como as caixas por abrir e as

que vão morrer por cima dos caixões

dialéctica que faz mover nuvens

por onde os pássaros gostam de andar

depois de cheirar as flores


Ao Fernando Carita

à espera que aconteça.

numa esplanada do areeiro, defronte para a paragem da rodoviária de lisboa,

pode ser que saia uma pessoa que eu conheça, não tem que ser senhora,

alguém que me encha a pressão de ar enquanto espero que a autopneus

me substitua dois pneus vandalizados na noite.

alguém que diga também já passei uma noite à espera do carro, podia ser pior,

não te furaram as tripas, podes recuperar a carteira, as tripas é que não podias.

obrigado, bebes uma cerveja? Pois, de manhã, sim, eu é que preciso de aliviar a /tensão, está, um café.

continuam a para autocarros a partir autocarros não não sai ninguém,

mas há muitas pessoas que não são vândalas, o russo do reboque que até lhe dei 5 /euros e

partilhámos memórias de bebedeiras de vodka,o barbudo que me atendeu nos /pneus,

não, não deixou a chave na ignição, amigo vá tomar o pequeno-almoço.

continuam a parar autocarros a partir autocarros eu já estou menos partido ligo os ca

cos das pessoas com que me cruzo e digam que às vezes também sou vândalo

na irascibilidade de que as coisas têm que ser perfeitas. pode ser

que não saia ninguém, mas entre a tolerância de que todos somos fracos.


Manuel Santos (Portugal, 1957). Mestrado em Literatura Comparada. Publicação de poesia dispersa por jornais e revistas. A primeira no nº1 de Cadernos do 40, Coimbra,1980. Jornalista freelancer e colaborador permanente no JL e nos Cadernos do Terceiro Mundo; colaborador na revista Os Meus Livros. Actualmente é professor no ensino secundário.