Ensinar literatura: uma retórica científica

LUÍS ADRIANO CARLOS


O ensino como dificuldade, ou mesmo como impossibilidade, no sentido do aforismo de Northrop Frye — “Ensinar literatura é impossível; por isso é difícil”[1] —, constitui um dos tópicos recorrentes e não raro obsidiantes no pensamento pedagógico acerca dos estudos literários. Se ensinar pressupõe uma comunicação, uma transmissão e uma verificação de resultados, o processo “implica um mínimo de objectividade”[2] em toda a sua tramitação. O que levanta imediatamente um paradoxo e um problema: como alcançar uma posição de objectividade quando se ensina literatura, essa “matéria negra”[3], indeterminada, tantas vezes irracional, excessiva ou caótica, que nasceu não para ser ensinada mas, no fundo, para ensinar?

É provável que os professores de literatura atormentados por esta impossibilidade teórica protagonizem uma espécie de drama hamletiano com raízes no complexo positivista. Mas a maior das ironias desse drama, porventura consoladora, é a partilha dos mesmos impasses epistemológicos pelo saber positivo do nosso tempo, nos seus domínios mais avançados. A metáfora da “matéria negra” provém justamente da área da Física teórica, presidida pelos princípios da relatividade e da incerteza, que Einstein e Heisenberg formularam na época do Modernismo histórico.

Como ensinar a estrutura do Universo, se ela é composta por matéria e antimatéria, por elementos positivos e vibrações insondáveis? Como ensinar o comportamento das partículas subatómicas, se a medição das suas propriedades é afectada e distorcida pela posição do observador? Como ensinar a natureza dos Buracos Negros, se ela é por definição directamente indescritível? Como ensinar a singularidade do Big-Bang, fenómeno imaginário do espírito científico, desprovido de repetição e de padrões estatísticos? E, enfim, como ensinar objectivamente o caos das estruturas irregulares que nos rodeiam, das nuvens, do clima, dos mares ou do vento?

No entanto, tudo isto se ensina, porque o que se ensina é um discurso, organizado em bases epistemológicas, sobre as coisas que se ocultam por detrás das evidências ingénuas. Ensina-se a invisível gravidade que se esconde dentro de uma maçã caída sobre a cabeça de Newton, ensina-se a formulação teórica que modifica a compreensão do mundo sem ter modificado a sua substância, ensina-se o princípio das coisas, o seu fundamento radical, as suas probabilidades estatísticas.

Inassimilável ao conceito metafísico de “verdade”, a objectividade possível nasce desta determinação da forma enquanto princípio de organização, por meio de uma intencionalidade constitucional que integra sujeito e objecto num processo retórico de afectações e modificações recíprocas: a experiência fenomenológica do conhecimento, visando a aparição eidética das coisas, em original, no transcurso dos actos vividos da consciência que, por natureza, tendem a contaminar os conceitos do entendimento lógico com as intuições da sensibilidade estética.

Se a literatura “não se faz para ensinar”, é contudo possível ensinar “métodos científicos” que ajudem a estudá-la, defendia Jacinto do Prado Coelho[4]. Eis uma ideia que persiste e resiste, de geração em geração, na história moderna dos estudos literários. Traduzida em metalinguagem semiótica, trata-se de “ensinar a produzir discursos sobre a Literatura”, como observou Eduardo Prado Coelho, uma geração depois[5]. Mas, afinal, estes discursos não são senão discursos sobre discursos que são discursos sobre discursos, numa extensa paráfrase infinitamente potenciada a que só o “amor da literatura” pode conferir um sentido e uma justificação: “[…] a literatura não pode ser ensinada — escreveu Jorge de Sena sem rodeios —. Ensinar seja o que for é apresentar um instrumental adequado e explicar a maneira de uma pessoa tirar proveito dele. Daí resulta que se ensina a escrever estudos sobre literatura, e estudos sobre os estudos de literatura, indefinidamente; ou se ensina a ensinar literatura”[6].

A consciência deste círculo vicioso convida o professor a suscitar uma ciência fundamental das determinações epistemológicas e metodológicas do objecto literário. De outro modo, a sua acção estará condenada ao sentimento do fracasso, singelamente expresso por George Monteiro, Professor Emeritus da Brown University, no termo da sua carreira académica: “Ensinar literatura foi sempre uma tarefa frustrante, na medida em que há sempre muito mais literatura do que aquela que se pode ensinar numa aula, num semestre ou, já agora, numa vida inteira”[7].

E, no entanto, o ensino da literatura, apesar de “impossível” ou pelo menos “difícil”, embora inevitavelmente confinado ao ensino do criticismo, tal como reconheceu Northrop Frye, “deve ser tentado, constante e incansavelmente tentado, e posto no centro de todo o processo educativo, porque a compreensão das palavras, a todos os níveis, é uma necessidade tão urgente e crucial como, no seu nível mais elementar, a de aprender a ler e escrever”[8].

A literatura não se ensina, mas aprende-se, pela mediação do pensamento crítico e do “goût de comparaison”, à semelhança da música na famosa sentença do compositor Manuel de Falla e ao abrigo do postulado sensualista da “estética da delicadeza” em Jean-Baptiste Du Bos[9]. Resta pois ensinar a aprender, não a arte de compor mas os modos de reconhecimento cultural e compreensão crítica do fenómeno literário, quer na sua ordem imanente, quer nas suas manifestações históricas. Resta ensinar a apreender e a compreender a natureza específica da literatura enquanto meio privilegiado de crítica da linguagem e, através dessa crítica, de libertação da consciência e do poder de apreciação. O essencial é ensinar que a literatura é uma maneira de dizer o que não pode ser dito de outra maneira com as palavras da tribo que organizam a rotina dos dias[10]. Ensinar, em síntese, que cada realização literária reproduz esse projecto da linguagem, repetindo irremediavelmente um sistema de possibilidades e um conjunto de disposições culturais, sem deixar de trazer consigo um valor acrescentado singular e intraduzível onde ressoa a faculdade produtiva do génio criador.

A ideia do trabalho difícil — ou impossível — inerente ao ensino da literatura, “obra do espírito”, radica na instabilidade complexa do seu objecto material. Um Buraco Negro serve hipoteticamente para uma série limitada e coerente de finalidades; pelo contrário, a literatura desempenha um número interminável de funções que justificam todo um emaranhado de abordagens disciplinares e interdisciplinares[11]. A dificuldade reside, desde logo, em seleccionar o que interessa conhecer num fenómeno monumental tão antigo e multifacetado que atravessa o tempo devorando tudo e o seu contrário, motivo por que Roland Barthes, na lição inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio de França, em 1977, lhe conferiu um estatuto de excepção: “Se por um qualquer excesso de socialismo ou de barbárie todas as nossas disciplinas fossem retiradas do ensino, exceptuando uma, a literatura deveria ser a disciplina salvaguardada, porque todas as ciências se encontram disseminadas no monumento literário”[12].

No entanto, acrescentava Barthes, “a literatura desvaira os saberes”. Assinale-se, indo mais longe, que este desvairamento da semiosis se acentuou muito antes do século XX, nos primórdios da Modernidade estética, com a revolta do Génio contra a Regra e a consequente eclosão do Romantismo. Se na Idade Clássica predominavam a imitação e o verosímil, a razão suficiente, o bom senso e o bom gosto, a regra preceptística, a proporção unitária e o equilíbrio estrutural como princípios fundadores da estética do Belo Ideal, com o novo paradigma disruptivo — já de resto ensaiado pelos barrocos, mesmo em França, paralelamente ao Classicisme seiscentista —, tudo se modificou na ordem das atitudes literárias e da relação entre o leitor e o texto.

A singularidade, a contradição e o terceiro incluído, a ironia e a transgressão, o absurdo e o caos, a instabilidade fragmentária, a estesia do amorfismo, o feio, o grotesco e o horrível, o cómico, o pitoresco e o sublime passaram a funcionar como critérios de legitimação estética. A lógica euclidiana cedeu à lógica fractal do irregular e da intensidade, do imprevisível e do impensável. Todavia, esta lógica aparentemente ilógica não ficou isenta de regularidades profundas, à semelhança do que sucede em toda a estrutura caótica mercê do homotetismo descrito por Benoît Mandelbrot[13]. Ora, bem entendido, os estudos literários descrevem há milénios o homotetismo destas irregularidades profundas do discurso por meio das categorias retóricas, dos tropos e das figuras.

Não é impossível, nem sequer especialmente difícil, ensinar a literatura da Modernidade nesta óptica, ainda que o seu Ser a um tempo se determine e indetermine na posição negativa do Não-Ser, isto é, embora a sua essência resida na contradição e na heterogénese, na flutuação dos limites e na indizibilidade do excesso, nessa revolta contra tudo e contra si mesma que acaba por inventar um novo tipo de tradição: a “tradição da ruptura” definida por Octavio Paz, na esteira de Harold Rosenberg, como “a tradição que se nega a si mesma para se continuar”, implicando “não só a negação da tradição mas também da ruptura”[14].

A tradição da ruptura é uma con-tradição a estudar e ensinar dentro dos limites desta lógica imanente, mas não sem evidenciar os seus ciclos de repetição, erosão e dissolução. Com efeito, a irregularidade original e a sua longa deriva estocástica (un coup de dés jamais n’abolira le hasard, advertia Mallarmé) oferecem padrões de regularidade susceptíveis de representação estatística, depois da aventura já secular que culminou nas vanguardas e cuja energia disruptiva foi amortecendo, de relais em relais, com as inerentes degradações de sinal, na segunda metade do século XX e no nosso tempo.

Este novo tipo de existência convencional das formas e da própria amorfia provoca uma conclusão simples mas irónica e perversa. Conforme assinalou Leyla Perrone-Moisés no fim do século passado, uma vez que o ensino tem por objectivo institucional “manter os fundamentos da sociedade e não questioná-los de maneira profunda”, uma literatura que ponha em xeque estes fundamentos e se afirme pela contestação anticlássica dos códigos estabelecidos, em nome da originalidade e do irrepetível, não pode senão abrir um processo de divórcio entre a prática literária e a prática pedagógica enquanto funções sociais[15]. Porém, acrescentava a autora com evidência quase apodíctica, as últimas décadas tinham configurado uma nova situação, que aliás se mantém hoje em dia: “A produção literária começou a sofrer de exaustão. Os gestos revolucionários das vanguardas já haviam sido assimilados e neutralizados pela sociedade, o ‘novo’ tornou-se repetitivo”[16]. Perderam as dimensões poética e estética da literatura, dir-se-á com melancolia, mas ganhou a possibilidade do seu ensino. O que significa que a literatura enquanto criação e o seu ensino enquanto património parecem manter um conflito de interesses provavelmente sem solução possível, que ameaça a condição do leitor como fruidor estético pela hegemonia da experiência cognitiva e documental.


[1] The Stubborn Structure: Essays on Criticism and Society, Londres: Methuen, 1970, p. 84.

[2] Jacinto do Prado Coelho, “Como Ensinar Literatura”, in Ao contrário de Penélope, 2.ª ed., Lisboa: Bertrand, 1987, p. 63.

[3] Manuel Frias Martins, “Matéria Negra e Ensino da Literatura”, Incidências, 1, Lisboa: 1999, p. 40.

[4] Ob. cit., pp. 46 e 51-52.

[5] “A Evolução da Teoria Literária e o Ensino da Literatura em Portugal”, in A Letra Litoral, Lisboa: Moraes, 1979, p. 70.

[6] “Amor da Literatura”, in O Reino da Estupidez-I, 2.ª ed., Lisboa: Moraes, 1979, p. 123.

[7] “O Ensino da Literatura neste Momento”, Incidências, 1, Lisboa: 1999, p. 115.

[8] Northrop Frye, Ob. cit., pp. 75 e 84.

[9] Réflexions Critiques sur la Poësie et sur la Peinture (1719), Fac-simile da ed. de 1770, Genebra: Slatkine, 1993, p. 228.

[10] Remeto a este propósito para o meu artigo “A Poesia Portuguesa do Século XX e o Problema do seu Ensino”, Incidências, 1, Lisboa: 1999, pp. 51-53.

[11] Cf. Maria Vitalina Leal de Matos, “As Funções da Literatura”, in Ensino da Literatura: Reflexões e Propostas a Contracorrente, ed. de Maria Isabel Rocheta e Margarida Braga Neves, Lisboa: Cosmos, 1999, pp. 39-45.

[12] Lição, Lisboa: Edições 70, 1979, p. 19.

[13] Cf. Objectos Fractais: Forma, Acaso e Dimensão, Lisboa: Gradiva, 1991.

[14] Los Hijos del Limo: Del Romanticismo a la Vanguardia, Barcelona: Seix Barral, 1981, pp. 17 e 147. Cf. Harold Rosenberg, The Tradition of the New, Nova Iorque: Horizon Press, 1959.

[15] “Consideração Intempestiva acerca do Ensino da Literatura na Pós-Modernidade”, Incidências, 1, Lisboa: 1999, p. 28.

[16] Ibidem.


LUÍS ADRIANO CARLOS