Ensaios que valem para sempre

ADELTO GONÇALVES


Adelto Gonçalves, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br


I

Letras del Ecuador, revista de literatura lançada pela Casa de la Cultura Ecuatoriana Benjamín Carrión (CCE), de Quito, em abril de 1945, criou fama em toda a América Latina pela excepcional qualidade de seus artigos e ensaios. Em 74 anos de existência, a publicação, que teve anunciada sua última aparição em meados de 2012, com edição comemorativa por ter chegado ao seu número 200, ressurgiu em abril de 2015, em seu formato original, tablóide, para seguir ideia pioneira de seu fundador, Benjamin Carrión (1897-1979), escritor, diplomata, político, professor da Universidade Central do Equador, ex-ministro da Educação e promotor cultural, considerado o grande suscitador da cultura de seu país. Trata-se de uma revista que continua a brindar os seus refinados leitores com textos que surpreendem por suas reflexões no campo das Ciências Humanas, com temáticas que nunca envelhecem.

Para marcar essa trajetória que segue firme, a Casa de la Cultura Ecuatoriana Benjamín Carrión vem lançando também volumes que resgatam a presença da publicação em mais de sete décadas de produção literária e reúnem obras publicadas nos cem primeiros números da revista Letras del Ecuador. Em 2010, saiu o volume de número 3 que traz ensaios que vieram à luz entre dezembro de 1948 e maio de 1951 nos números de 39 a 67 da revista.

Jorge Enrique Adoum, poeta equatoriano. Foto: El Telégrafo/Ecuador.

São textos que constituem não só um amálgama do pensamento sobre a identidade do homem equatoriano como “um espelho do realidade – drama e promessa – espiritual e fática de todo um continente”, como observa o poeta, escritor e professor Fabián Guerrero Obando, doutor em Jurisprudência pela Universidade Central do Equador, na apresentação que escreveu para a quarta capa do tomo. Enfim, como diz Obando, este volume condensa “uma boa parte dos grandes temas públicos do século XX, locais, continentais e de dimensão universal”.

De fato, o volume reúne textos de 39 ensaístas e os temas variam de análises sobre autores equatorianos a estudos a respeito de autores universais, como Walt Whitman (1819-1892), Guillaume Apollinaire (1880-1918), Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), Thomas Stearns Eliot (1888-1965), Gabriela Mistral (1889-1957), Ramón del Valle Inclán (1866-1936), Edgar Allan Poe (1809-1849), César Vallejo (1892-1938), Antonio Machado (1875-1939), Sinclair Lewis (1885-1951), Blaise Cendrars (1887-1961), e o pianista e compositor polonês Frédéric Chopin (1810-1849), entre outros.

Entre os ensaístas equatorianos que fazem parte deste volume estão Jorge Enrique Adoum (1926-2009), César Dávila Andrade (1918-1967) e Jorge Carrera Andrade (1903-1978), cujos poemas constam da Antologia Poética Ibero-americana (Cuiabá, Associación de Agregados Culturales Iberoamericanos, 2006), traduzidos por Fernando Mendes Vianna (1933-2006), José Jeronymo Rivera e Anderson Braga Horta, além de Pio Jaramillo Alvarado (1884-1968) e o próprio Benjamín Carrión, para citarmos apenas os mais conhecidos entre nós.

II

César Dávila Andrade, poeta equatoriano

Um dos melhores ensaios deste volume é aquele que, publicado na edição de número 39-40, de outubro-dezembro de 1948, aborda a vida e a obra do poeta T. S. Eliot, Prêmio Nobel de Literatura de 1948, assinado por Jorge Enrique Adoum, para quem a poesia do poeta inglês sempre haverá de transmitir uma “sensação de desolação, de morte fria, solitária”. Ou seja: “Para sempre a terra será para ele a terra devastada onde não há água, onde se busca um caminho, através de tudo aquilo a que ele renunciou, por desorientação, por caracteres contraditórios de sua vida. Renunciou a seu país de origem, convertendo-se em britânico; renunciou ao seu tempo regressando à antiguidade; renunciou às soluções que a experiência dos homens dava aos problemas do mundo, recorrendo à fé e à humildade franciscana, distorcida e vestida de rima perfeita”.

Como se sabe, Eliot, nascido nos Estados Unidos, é autor do poema “Terra devastada” (1922), que se transformou em mito literário como o Ulisses (1922), de James Joyce (1882-1941), ao mostrar a Europa arrasada depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), “os ideais e a fé triturados sob os cascos da cavalaria e das forças motorizadas, o desconcerto geral e a dúvida”, nas palavras de Adoum.

III

De César Dávila Andrade, o volume traz dois ensaios: o primeiro sobre o médico, psiquiatra e escritor sueco Axel Munthe (1857-1949) e o segundo sobre Antonio Machado”, poeta ligado ao Modernismo espanhol que, aliás, nada tem a ver com o Modernismo brasileiro, constituindo um movimento artístico correspondente ao art nouveau francês. De Machado, Andrade diz que “Don Antonio não aparecia por Madri. Ele habitava e purgava a Espanha profunda, aquela que é difícil de olhar; a recatada, aquela que viveu Cervantes, quando andava pelos pequenos povoados; a que amou Juan Ruiz, quando se largava a vagar acompanhado de ruidosos estudantes metidos a poetas; a que conheceu Federico, desde sua carreta migrante, entre os magos da vida em sonho”.

Para quem não sabe, não custa dizer que Juan Ruiz (c.1.284-c.1.351), também conhecido como Arcipreste de Hita, é autor de uma das obras em versos mais importantes da literatura medieval espanhola, Libro del buen amor (1330). Já Federico, obviamente, refere-se ao poeta andaluz Federico García Lorca (1898-1936), assassinado por uma horda fascista em Granada ao início da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Já Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) é o famoso autor de Dom Quixote (1605), considerado o primeiro romance moderno, um clássico da literatura ocidental.

O breve ensaio dedicado à Axel Munthe, publicado no número 42, de fevereiro de 1949, foi escrito por Andrade quando o poeta ainda vivia, depois de uma vida dedicada ao exercício da medicina em Paris e Roma, que o levaria, inclusive, a tornar-se médico da família real sueca. Filantropo e defensor dos direitos dos animais, por aqueles anos, Munthe, autor de O Livro de San Michele (1929), sua obra mais famosa, andava numa luta intensa contra a propagação da cólera em Nápoles. Descreve Andrade assim a figura do médico-poeta: “(….) Vai andrajoso, insone, faminto, dando assistência aos coléricos. Sua figura apostólica e romântica entra no Convento das Sepultadas Vivas e presencia a agonia das estranhas enclausuradas. Presencia o aflorar das ratazanas enlouquecidas que brotam aos milhares das cloacas romanas e devoram indistintamente moribundos e cadáveres”.

IV

Já de Jorge Carrera Andrade, o volume traz três ensaios: “Chateaubriand e os índios”, “Grandeza e miséria do Existencialismo” e “Carta de navegar pela poesia hispano-americana”. No primeiro ensaio, publicado no número 56-60 da revista, abril-agosto de 1950, o poeta-ensaísta faz um resumo da vida de François-René de Chateaubriand (1768-1848), escritor, ensaísta, diplomata e político francês, de origem aristocrática, que se imortalizou por sua obra literária pré-romântica.

Jorge Carrera Andrade, poeta equatoriano. Foto: El Telégrafo/Ecuador.

Do visconde de Chateaubriand, o quitenho lembra que ele deixou sua Saint-Maló natal protestando contra a sociedade francesa e a corrupção de seu tempo e declarando que preferia “o desterro das sociedades naturais” do Novo Mundo. E reproduz o que o escritor francês escreveu a respeito dos indígenas que conheceu: “Os jovens índios não reclamam nunca, nem tampouco discutem; não são alvoroçados nem mexeriqueiros nem melancólicos, e em seu semblante se descobre certa seriedade própria da tranquilidade de alma e certa nobreza filha da independência”.

No ensaio sobre o Existencialismo, publicado no número 62, de novembro-dezembro de 1950, Carrera Andrade faz um retrospecto do que estava sendo à época aquele fenômeno literário, nascido de conversas entre intelectuais em mesas do Café de Flore, um pequeno estabelecimento localizado no bairro parisiense de Saint-German-de- Prés, onde pontificava o filósofo Jean Paul Sartre (1905-1980). “O Existencialismo é uma escola literária, uma filosofia, uma moral, um culto?”, indagava Carrera Andrade. E respondia: “(…) é tudo isso: nasceu da literatura e vai se transformando em seita. Seu fundador e supremo pontífice é Jean Paul Sartre, novelista, professor de filosofia, homem de quarenta anos, com rosto de administrador de hotel ou de rentista aposentado”.

Carrera Andrade, porém, ao final de seu trabalho, não deixa de condenar o vazio existencial defendido por Sartre, citando o filósofo russo Fiodor Dostoievsky (1821-1881), para lembrar que se a humanidade vier a perder a fé – a fé na elevação do destino humano –, o mundo retrocederá à barbárie. E argumenta que, com a frase “cada coisa a seu tempo”, frequentemente repetida por Sartre, caía o véu que cobria o Existencialismo, deixando à mostra sua nudez, ou seja, “uma teoria filosófica da vida cotidiana para o uso de gente ordinária, sem espírito, sem moral, sem religião e sem idealismo”.

No terceiro ensaio, publicado no número 66, de abril de 1951, Carrera Andrade, como deixa claro o seu título, traça um retrospecto da poesia hispano-americana desde a época do domínio espanhol no continente que dura de 1600 até 1830, mas continua até 1900 dentro da tradição do colonialismo, nutrindo-se do romanticismo hispânico. Em seguida, procura fazer uma “navegação por todo o oceano da poesia hispano-americana” no período que vai de 1920 a 1950, que, segundo ele, “é muito variado e oferece inumeráveis surpresas”.

É um período que assinala a agonia do esplendor modernista, marcada por grandes figuras como Leopoldo Lugones (1874-1938) na Argentina, José Maria Eguren (1874-1942) no Peru, Medardo Ángel Silva (1898-1919) e Humberto Fierro (1890-1929) no Equador, Guillermo Valencia (1873-1943) e Porfirio Barba Jacob (1883-1942) na Colômbia e Ramón López Velarde (1888-1921) no México. É a época também em que começam a se afirmar duas vozes que marcam o século XX na América hispânica: o chileno Pablo Neruda (1904-1973), Prêmio Nobel de Literatura em 1971, e o mexicano Octavio Paz (1914-1998), Prêmio Nobel de Literatura em 1990.

Para Carrera Andrade, a poesia de Neruda constituía, já à época, “a realização maior do espírito sul-americano atual”, enquanto o livro Libertad bajo palabra (1949), de Paz, era “uma das mais profundas realizações da lírica de nosso tempo”.


Letras del Ecuador 100: Ensayo, tomo III, selección de ensayo de la revista Letras del Ecuador 1948-1951. Quito: Casa de Cultura Ecuatoriana Benajmín Carrión, 2010, 564 páginas. E-mail: dpcce@hotmail.com   Site: www.cce.org.ec