Engenho e génio de Daniel Faria

LUÍS ADRIANO CARLOS


Luís Adriano Carlos, n. 1959, é ensaísta e professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Desde 1982, publicou estudos de crítica, poética, retórica, história da literatura, estética literária, estética comparada e semiótica. Organizou edições de obras de vários autores, do Padre António Vieira a Óscar Lopes. O seu livro Fenomenologia do Discurso Poético foi distinguido com o Grande Prémio de Ensaio da APE/PT 1999. Realizou as edições fac-similadas das revistas históricas Cadernos de Poesia e Árvore. Entre os trabalhos mais recentes, destaca-se a organização, precedida do estudo “Crítica do Gosto Literário”, da antologia em dois volumes Os mais Belos Poemas Portugueses Escolhidos por Vinte e Cinco Poetas. É também autor de obras de poesia, pintura e música.


Primeira edição online da Conferência proferida no Colóquio “Se acender a luz não morrerei sozinho”: Re­ceção de Daniel Faria, a 20 Anos da Morte (Câmara Municipal de Tabuaço, 8 de Junho de 2019). Impressa nas respectivas Actas em finais de 2019 pela Fundação Manuel Leão, de V. N. de Gaia, ao cuidado de Carlos A. Moreira Azevedo.


Podemos falar de Daniel Faria mediante vários jogos de linguagem. Um deles é o mais simples, como mero poeta cuja obra lhe sobreviveu graças à escrita, esse poderoso pharmakon que cura o esquecimento, conforme diria Platão no Fedro. Todos os poetas que difundem os seus escritos no espaço público têm esse destino, nem que seja nas bibliotecas beneficiárias do depósito legal. Com mais ou menos amigos, com maior ou menor público, os poetas também são filhos do tempo e também são devorados por ele, mas permanecem numa dimensão trans‑histórica como eterno presente susceptível de ser vivido e revivido, de modo continuamente originário dentro dos limites da cultura humana.

Outro jogo de linguagem é o que se interpõe entre nós e a própria poesia viva, ao lermos, na apresentação do presente Colóquio, que Daniel Faria é um “poeta maior”[1], classificação que já vinha inscrita, em 2003, no título e no corpo do prefácio de Vera Vouga à edição do volume Poesia[2]. Ora, este jogo de linguagem é mais complexo do que o anterior e obriga-nos à justificação da alegada “maioridade” num plano crítico, isto é, com conceito e fundamento.

Na verdade, tendemos a considerar “poetas maiores” os autores da nossa preferência, mediante uma intuição que conhece pela sensibilidade e não pelo entendimento. Tais apreciações são um misto de juízo de gosto, que reflecte o estado de satisfação do sujeito e não o do conceito do objecto, e de juízo valorativo, que se baseia no valor de uso, frequentemente interessado, e em comparações intuitivas sem padrão de medida universal.

Em minha legítima defesa, sou claro e reafirmo, dezasseis anos depois, que considero Daniel Faria o maior poeta da sua geração. Mais declaro acompanhar todos aqueles que o vêem como “poeta maior”. Mas não fico satisfeito com tal classificação sem a devida crítica a esse juízo de valor, que se impõe como um teste oportuno vinte anos depois da sua morte. Entramos no domínio muito exigente da valoração da faculdade produtiva, que envolve a Poética, a Crítica, a História Literária e, acima de todas, a Estética. De que é que falamos quando dizemos que Daniel Faria é um “poeta maior”?

Uma possível resposta, mais imediata, é a de sentirmos na sua poesia uma grandeza familiar, semelhante à de outros que a tradição reconhece como poetas maiores. Não vou mencionar nomes já testados pelo tempo — o grande magistrado no julgamento das obras de arte —, porque seria uma absoluta injustiça e talvez uma heresia infame para alguns. Mas há outras respostas menos rápidas, que não são fáceis de obter, e que no entanto poderemos procurar, através de conceitos que configuram esta obra poética de forma distinta e superior, tomando como referência a média qualitativa da poesia que nos é possível conhecer. Lançando mão, naturalmente, dos cinco critérios exigidos ao crítico literário por David Hume no ensaio Of the Standard of Taste, de 1757: delicadeza de sentimento, prática, poder de comparação, ausência de preconceito e bom senso, embora o filósofo reconheça que sempre acabamos por escolher os nossos autores favoritos tal como escolhemos os amigos, com base numa conformidade de temperamento e disposição, fraqueza humana implícita para a qual não há remédio[3].

O primeiro passo para nos acercarmos da resposta é separar o sujeito que conhece do objecto conhecido. Só o sujeito conhece, mas o objecto conhecido pode ser o próprio sujeito do outro lado do espelho, caso não conheça por meio de conceitos e juízos críticos. Teremos de, por momentos, proceder à epoché husserliana, ou redução eidética, pondo entre parêntesis a ilusão mundana, as conexões psicofísicas, as ideias pré-constituídas e os preconceitos. Seguidamente, é altura de visar o objecto, ingressando no seu horizonte interno até atingirmos os seus sedimentos mais primitivos. É um esforço de abstracção que talvez possa ser comparado ao do exercício da meditação e da composição do lugar, neste caso bem situado, pois o objecto é o nosso corpus e o nosso topos: a obra de Daniel Faria, integral, exposta, nua e crua, despida dos sedimentos com que em vinte anos foi encoberta, desde 1998, ano da publicação dos dois principais livros em vida do autor, Explicação das Árvores e de Outros Animais e Homens que São como Lugares Mal Situados.

Examinemos a obra tal como o poeta examinava um homem: o que mais interessa é ver o seu lugar rodando para perceber o eixo que a move. É essa postura que Husserl recomenda na descrição fenomenológica, a de examinar as seis faces do cubo enquanto ele vai rodando perante os nossos olhos. E o que vemos é que — para ser frontal — a obra poética de Daniel Faria está presa a uma arquitectura que não faz parte do seu substrato primitivo, o que a prejudica na percepção da sua aparição estética e, em consequência, na avaliação da sua natureza e do seu lugar.

Apresentei e defendi com muita honra o livro Poesia em 2003, a convite de Vera Vouga, minha amiga e colega, mas hoje, passados todos estes anos, ao reler a mesma obra, vi claramente visto, com o escrúpulo profissional a que estou obrigado, que os poemas precisam de se libertar da arquitectura então adicionada nessa edição póstuma. O prefácio integra essa arquitectura como parte “I — Confidência”, mas deveria cingir-se à sua condição de paratexto ou peritexto[4], saindo do perímetro da obra poética que apresenta e permanecendo no lugar autónomo que compete a um prefácio.

Os dois “volantes” com inéditos, “II — Antemanhã” e “V — Anteaurora”, são, do ponto de vista editorial, estruturalmente incompreensíveis e prejudiciais na apreciação estética do leitor exigente, uma vez que não passam de pequenas e irrisórias selecções de poemas menores. Não é com estes textos de frágil factura, instalados em posições de privilégio na topografia do livro, que o Autor poderá ser considerado “poeta maior”.

Por seu turno, a parte “IV — Das Madrugadas”, alegoria dos “Livros da idade juvenil” que só no índice se explicita, colige as melhores primícias do poeta, em três colectâneas vindas a lume aos 21 e 22 anos, mas sem poderem ombrear com a poesia que tornou Daniel Faria um escritor reconhecido e consagrado. Por esse motivo, seria judiciosa a arrumação editorial dos “inéditos” e da juvenília de forma mais discreta, com um peso reduzido e uma função estética de segundo plano, para efeitos de documentação e estudo genético ou como simples curiosidade literária. Sem essa intervenção, dificilmente poderemos falar de um “poeta maior” quando lemos Poesia.

Quero acreditar que Vera Vouga, hoje, depois das transformações que os próprios Estudos Literários sofreram ao longo destes anos, estaria de acordo comigo se continuasse entre nós e decerto não teria esperado por esta perspectiva para reformular a edição. A verdade é que o engenho poético dos textos primitivos é corrente e banal no quadro da poesia contemporânea e a qualidade específica do génio não se lhes aplica. Nessa medida, estes poemas contribuem, numa visão de conjunto, para relativizar o epíteto de “poeta maior” enquanto integrarem a obra como pedras de um edifício espúrio que, tanto quanto sei, o Autor não construiu.

Com efeito, a matéria que faz de Daniel Faria um poeta maior é a que se regista nos dois livros de 1998 e no póstumo Dos Líquidos, de 2000. Mesmo assim, tal como sucede com todos os poetas maiores, existem facturas de menor valia estética que estão longe de contribuir para o impacto extraordinário do Autor junto do público qualificado. Relendo agora o texto que escrevi para o lançamento da compilação Poesia em Lisboa e no Porto, “A Poesia de Daniel Faria”[5], comprovo que lhe prestei o mais que justo e merecido reconhecimento, mas verifico que não dei qualquer importância estética aos tentames juvenis ou livrescos e às sobras inéditas que integravam a arquitectura, sem ponderação e com a mesma dignidade dos três “Livros da idade adulta”, agrupados por ordem cronológica na parte “III — Das Manhãs”, ainda que tenha defendido a edição como uma “obra” de Vera Vouga e dos editores, mal imaginando que viria a tornar-se a edição de referência no futuro, actualmente com a chancela da Assírio & Alvim. De resto, quem conhece a colectânea não precisa de ser informado da inexistência do ciclo das Tardes e do ciclo das Noites, o que, num poeta com uma vertente mística importante, é uma lacuna interpretativa de que a obra se ressente, e não só devido às glosas da Noite Escura de São João da Cruz ou à evidente influência dos Hinos à Noite de Novalis.

O poema que dá início à formação da ideia de um “poeta maior” é “Ando um pouco acima do chão”, nono de Explicação das Árvores e de Outros Animais, porque nasce precisamente nele o tom maior de que adiante falarei. É esta peça, digamos em termos musicais, a tónica da sinfonia desenvolvida no livro. Além disso, no plano retórico da elaboração do discurso, já concentra os dispositivos da repetição geradora das grandes composições que farão de Daniel Faria um poeta maior. Em síntese, uma obra-prima preciosa, até pelo seu carácter inaugural e instaurador numa poética que aí se emancipa à nossa vista. Vale a pena convocá-lo para compreendermos mais vivamente os argumentos que se seguem:

Ando um pouco acima do chão

Nesse lugar onde costumam ser atingidos

Os pássaros

Um pouco acima dos pássaros

No lugar onde costumam inclinar-se

Para o voo

 

Tenho medo do peso morto

Porque é um ninho desfeito

 

Estou ligeiramente acima do que morre

Nessa encosta onde a palavra é como pão

Um pouco na palma da mão que divide

E não separo como o silêncio em meio do que escrevo

 

Ando ligeiro acima do que digo

E verto o sangue para dentro das palavras

Ando um pouco acima da transfusão do poema

 

Ando humildemente nos arredores do verbo

Passageiro num degrau invisível sobre a terra

Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores

No meio de incêndios

Estou um pouco no interior do que arde

Apagando-me devagar e tendo sede

Porque ando acima da força a saciar quem vive

E esmago o coração para o que desce sobre mim

 

E bebe[6]

Porém, este livro ainda acolhe uma representação significativa de poemas breves, inclusive dísticos, ao mesmo tempo que ensaia a implantação de uma poética do poema longo e da cadência de arte maior, servindo motivos e temas da ordem do sublime. Podemos deduzir da sua leitura que consiste num magnífico livro de transição. A viragem definitiva ocorre com o livro seguinte, mas dado à estampa no mesmo ano de 1998, Homens que São como Lugares Mal Situados, impondo-se ao primeiro contacto com uma obra-prima memorável e gloriosa, o pórtico “Examinemos um homem no chão”, que comunica transtextualmente com o poema já citado “Ando um pouco acima do chão”. Senhor de evidente mestria do ritmo e da composição, o poeta adopta como padrões o verso e o poema longos, num tipo peculiar de arte maior que amplifica o tom maior da sua linguagem. Estas características dominantes produzem um poderoso efeito estético na mente do leitor, dado provocarem o sentimento de uma facilidade produtiva e de uma elevação emocional habitualmente reconhecíveis nas obras de génio. As três primeiras secções são excepcionais e atingem um lugar cimeiro na lírica portuguesa como um todo[7]. Eu diria — sem qualquer crueldade, mas, pelo contrário, com infinita admiração —, que bastava a Daniel Faria ter publicado estas três primeiras sequências do livro que precedem uma série de glosas bíblicas, ou mesmo o livro inteiro, para alcançar o estatuto de poetas maiores de um só livro — como, por exemplo, Cesário Verde ou Camilo Pessanha.

O conjunto que encerra o ciclo “da idade adulta” é o livro póstumo Dos Líquidos, que prolonga a poética já consolidada em Homens que São como Lugares Mal Situados por meio de uma retórica da repetição e da amplificação, mas que já não possui o mesmo grau de coesão interna e regularidade de processos, acolhendo múltiplos casos de composições em arte menor e tom menor. O facto de investir mais profusamente nas glosas bíblicas, místicas e teologais origina um fluxo de intertextos onde, por inerência, o génio do artista se vê capturado, pelo agente do comentário e da meditação, numa rede de puros paragramas textuais em movimento.

Ora, este é o meu corpus. Não ignoro, porém, que só uma antologia concreta dos poemas maiores poderia exibi-lo com esplendor e inteira comunicabilidade. Julgo mesmo que a divulgação da obra deste jovem poeta carece, com urgência, de uma antologia que apresente os seus poemas maiores em plena liberdade estrutural e contextual, de molde a criar uma imagem canónica do que nela é superior e digno de vivência e reinterpretação através dos tempos. Com efeito, espera-se de uma antologia, no universo dos amadores da literatura, uma selecção que separe o trigo do joio. A expectativa da melhor qualidade faz parte da ideia de antologia desde a primeira recolha documentada, Stéphanos (que significa Coroa ou Grinalda), da autoria de Meléagro de Gádaros, no séc. I a. C., que classificou autores eleitos segundo um sistema de flores. Na realidade, o termo “antologia” provém do grego anthos, flor, e designa uma colheita de flores, um discurso das flores ou, pela via latina, um florilégio com a função de representar arranjos das mais belas flores. Como é consabido, a nossa civilização recorreu a este expediente para consagrar as melhores produções do espírito, pois não existe autor de primeira grandeza que não esconda na sombra as suas puerilidades, fraquezas ou misérias, em nome desse desiderato tão humano de se elevar acima de si mesmo e de com ele também elevar, por um milímetro que seja, a própria humanidade.

Ao propor-me divagar sobre o engenho de Daniel Faria, estive longe de pensar no poeta como engenheiro, à semelhança de Fernando Pessoa / Álvaro de Campos ou de Saúl Dias, o pintor Julio, irmão de José Régio, ou ainda de E. M. de Melo e Castro, o nosso maior experimentalista, cuja formação em engenharia têxtil deu surpreendentes contributos à prática e ao conceito do texto poético. Pelo contrário, pensei, naturalmente, no sentido camoniano de “engenho e arte” na segunda estância de Os Lusíadas, em que “engenho” se opõe a arte, indústria ou técnica, e ainda na Arte de Ingenium de Baltazar Gracián, que procurou, em meados do século XVII, uma síntese entre a arte e o engenho na estética barroca. A verdade é que o termo latino ingenium significa “talento inato”. Giambattista Vico, na sua famosa Ciência Nova, de 1725, descreveu o ingenium, do ponto de vista da Retórica, como “faculdade mental que permite religar de maneira rápida, apropriada e feliz coisas separadas”, sendo “ao mesmo tempo sintética e tópica” e assim permitindo “a invenção e a criação”[8]. Foi esse talento que figurei ao ser convidado a regressar à obra de Daniel Faria dezasseis anos depois. Bem entendido, esse talento está patente nas produções juvenis, mas o Autor precisou de um longo período de maturação para adquirir uma Poética cujos meios lhe dessem acesso à expressão do genius, uma condição especial que mistura o talento inato e o conhecimento da técnica num plano superior, não à margem das regras da arte, mas acima delas, elevando a linguagem para além de si mesma e do dizível.

Numa síntese feliz, em 1767, William Duff, estudioso britânico do problema da criação artística, definiu o génio original como “o princípio vital que anima todas as espécies de composição”[9] e que não reconhecemos nas composições medíocres e inertes. É provavelmente este princípio vital que Daniel Faria parece intuir num trecho de reflexão crítica constante de O Livro do Joaquim: “O poeta é o que descobre. Isto é, o que vê primeiro”[10]. Sobre os génios, afirmou que estão “próximos de Deus”[11], ideia que atravessa a civilização ocidental, de Platão ao Romantismo.

No senso comum literário, o génio é usualmente associado ao Romantismo e tido por conceito antiquado, sem razão de ser, e eu aprendi com os meus professores e alguns poetas do último quartel do século XX que se trata de uma figura delirante de origem romântica, razão pela qual a visão tecnocrática da poesia predomina nas gerações literárias dos últimos cem anos, nomeadamente em todos os tipos de modernismo. Sintoma que Penelope Murray, organizadora de um esclarecedor volume colectivo sobre a história da ideia de génio, descreveu nestes termos, há trinta anos, a nível internacional: “Entre críticos e académicos em geral, […] a noção de génio tende a ser olhada como irrelevante, uma mera ficção romântica, que é principalmente invocada em ordem a evitar a análise rigorosa dos textos que é a própria tarefa da crítica. […] Para muitos, a dificuldade de responder a questões como estas, a própria indefinibilidade do génio, torna‑o um conceito sem sentido”[12]. Em boa verdade, e por mais que pese ao senso comum esclarecido, a doutrina do génio tem raízes platónicas e aristotélicas. Ambos os filósofos da Antiguidade, Platão e Aristóteles, elaboraram explicações da origem da criação excepcional e as suas teses antagónicas configuraram a conceptualização moderna do génio muito antes do Romantismo. É esse trajecto que vou agora assinalar sumariamente, para compreendermos melhor o génio de Daniel Faria e a adequação do conceito à sua actividade criadora.

Em sentido moderno — poético e estético —, o conceito de génio tem origem na Renascença italiana, com a síntese formulada por Marsilio Ficino no tratado De Vita, de 1489, que harmonizou duas perspectivas contraditórias legadas pela Antiguidade, a da tradição platónica do furor divino e da inspiração, inscrita nos diálogos Fedro e Íon, e a da tradição aristotélica e fisiológica da melancolia consagrada pelo Problema XXX, 1[13]. Conciliando estas doutrinas com o neoplatonismo e o hermetismo, o filósofo de Florença postulou que o movimento interior da alma imortal em direcção à unidade eterna é assistido pela concorrência de três forças: uma força sobrenatural, a inspiração do spiritus subtil; um poder oculto que amarra magicamente o génio humano ao reino de Deus; e ainda a disposição natural do humor melancólico moderadamente inflamado, aspecto a que não é alheio o facto de o autor ter exercido medicina, conhecendo portanto a longa tradição pneumatista da melancolia, desde Hipócrates e Aristóteles até Rufus de Éfeso, Galeno e, na Idade Média do século XI, a Escola de Salerno e Constantino Africano. Por sua vez, Cornelius Agrippa deu um impulso decisivo à difusão do tema pela Europa a partir de 1510, com o famoso tratado sobre a filosofia oculta, em particular no capítulo 60 do primeiro livro, dedicado ao furor, às adivinhações e ao poder demonológico do humor melancólico.

O tema do génio não tardou a tornar‑se um dos pontos focais da especulação intelectual de Quinhentos, conforme demonstrou já neste século Noel L. Brann, num estudo exaustivo abundantemente documentado[14]. O antigo conceito de ingenium, presente em vários textos de Cícero como designação estrita do talento inato do indivíduo dotado de um alto poder de síntese, alargava‑se assim a uma esfera semântica onde conviviam as dimensões antinómicas do génio sobrenatural e do génio natural. Contudo, alguns sectores não aceitaram a amálgama das duas teorias do génio. Perto de Florença, em Pádua, Pietro Pomponazzi promoveu a irradiação de uma tese radicalmente naturalista, difundida entre 1516 e 1520, em duas obras sobre a imortalidade da alma e os encantamentos. A melancolia, nesta perspectiva, passou a representar o papel de motor natural do génio sem qualquer mediação do furor divino.

Fora de Itália, a explicação melancólica e naturalista circulou em duas obras publicadas em Espanha e Inglaterra, que tiveram profunda influência até ao século XIX e que ainda hoje são objecto de estudo e reedição. A primeira, Examen de Ingenios para las Ciencias, de Huarte de San Juan, vinda a lume em 1575 — um ano antes do Trattato dell’Ingenio dell’Uomo do italiano Antonio Persio —, propiciou uma sistematização do Problema XXX e da teoria dos humores aplicada à habilidade dos homens com vista à melhoria do reino, estabelecendo como condição necessária à composição de obras perfeitas a destreza do ânimo e a agudeza do engenho natural. A segunda, The Anatomy of Melancholy, de Robert Burton, o mais desenvolvido estudo sobre o tema, de 1621, reafirmava, em pleno Barroco, a influência da melancolia ligeiramente adusta na formação de caracteres propensos ao wit, equivalente britânico da agudeza[15].

No quadrante dos apologistas radicais da teoria sobrenatural, coube a Francesco Patrizi a tarefa de dissolver a síntese do génio forjada por Ficino, em Discorso della Diversità dei Furori Poetici, de 1545, e em Della Poetica, de 1586, um ano depois da publicação do tratado de Giordano Bruno sobre os furores heróicos. As suas intervenções no debate foram a ponte para a teoria do génio concebida por Campanella, numa perspectiva cristã e no seguimento da Contra-Reforma. Em vários dos seus textos, e em particular na Metaphysica, de 1638, Campanella desferiu um ataque impiedoso ao que considerava a falácia naturalista do materialismo aristotélico representado pelo Problema XXX e pelos seus promotores, entre os quais Avicena e Pomponazzi. Era ainda Platão que ressoava no génio de Campanella, só que enriquecido com o pampsiquismo e o animismo universal de Telesio. A faculdade genial derivava, em suma, de um princípio inato e imanente à consciência de si, estimulada por Deus através da iluminação e do movimento. O génio, numa palavra, era a Graça, uma ideia que teria consequências nos alicerces setecentistas da genialidade romântica.

A meio da segunda metade do século XVIII, na época conhecida como Geniezeit, o “período do génio” e do movimento Sturm und Drang, Johann Gottfried von Herder recomendou ao jovem Goethe a leitura da obra capital de Lord Shaftesbury, Characteristicks of Men, Manners, Opinions, Times, publicada em 1711 e rapidamente difundida pela Europa central. Não é difícil deduzir os principais motivos da recomendação. O pensamento filosófico de Shaftesbury repousa na ideia de um inovador sensus communis como fundamento moral da comunicação estética, articulado com a inward form (forma interna) residente no íntimo do poeta a título de poder formador. Na posse de um conhecimento intuitivo da inward form da humanidade e dos signos cósmicos da criação, o poeta é um ser moral que, à imagem do “Artista Soberano”, “observa os limites das paixões e conhece os seus tons e as suas medidas com exactidão”[16]. Eis o fermento doutrinário de uma estética moral e religiosa que, ao reconhecer a qualidade genial no carácter peculiar do poeta, livre de regras exteriores, procura superar o classicismo normativo em pleno ciclo da Querela dos Antigos e Modernos, o que se torna ainda mais evidente quando Shaftesbury identifica a inspiração com um “sentimento real da presença divina”[17] destinado a exprimir o sublime nas paixões humanas. Além disso, a inward form é a fonte dos vários tipos de génio originados no sentimento moral: o génio da nação, o génio do mundo, o génio da humanidade, o génio universal e o génio poético, figurado em Prometeu under Jove[18] (abaixo de Júpiter, ou de Deus), sem dúvida seminais na génese da mundividência romântica, particularmente em Hamann, Herder, Goethe e Friedrich Schlegel.

O poeta Edward Young foi outro dos faróis britânicos para os românticos alemães. Nele admiravam, além dos versos do famoso e influente livro Night Thoughts[19], a epístola Conjectures on Original Composition, de 1759, onde Young retomou o essencial de um texto (sem título) de Joseph Addison, impresso no famoso n.º 160 do jornal The Spectator, em 3 de Setembro de 1711[20]. Addison estabelecera a distinção clara, ainda não evidente na época, entre o original que imita a natureza e o imitador de modelos e autores, duas luminárias da literatura respectivamente classificadas como génios de primeira classe e génios de segunda classe. Ao contrário daqueles “que se formaram pelas regras e submeteram os seus talentos naturais às correcções e aos constrangimentos da arte”, os génios de primeira classe eram arrastados por um “fogo natural” para “vastas concepções das coisas e nobres excursões da imaginação”. Comparável às plantas selvagens, a extravagância do génio original “é infinitamente mais bela — afirmava Addison — do que todo o arranjo e polimento daquilo a que os franceses chamam Bel Esprit”, limitado na forma e na beleza pela “habilidade do jardineiro”. A tudo isto, juntava‑se um “impulso divino que ergue a mente acima de si mesma”, corolário platónico que seria adoptado por Addison sob os auspícios do célebre afflatu divino de Cícero em De Natura Deorum, segundo o qual nenhum homem foi grande sem inspiração sobrenatural[21].

Esta doutrina acabou por investir a tradição platónica no âmago do Romantismo, já sem o menor vestígio da sua contrapartida aristotélica, atingindo altos cumes especulativos com Schopenhauer e Hegel, para se vulgarizar como marca do próprio génio enquanto categoria estética e literária. Semelhante estase conceptual, inoculada no senso comum e até em muitos debates que acompanharam a literatura do século XX, resume‑se em breves palavras: o génio consiste num criador predestinado e excepcional, incompreendido pelos filistinos, que tem a faculdade de comunicar com o Além. Foi esta crença que fomentou, a partir do século XIX, uma antropologia literária de pendor hagiográfico, em grande medida responsável pelo descrédito do conceito de génio.

Primeiro com o impacto da Psicologia experimental e da ideologia científica da degenerescência, que diagnosticou na faculdade genial sintomas de nevrose degenerativa epileptóide[22], depois com a vaga positivista e o surto das Ciências Sociais, que promoveram a figura alternativa do Intelectual, e finalmente com o culto modernista da impessoalidade, o génio foi objecto de crescente desvalorização e até maldição, apesar da sua apologia clarividente pelo italiano Giovanni Bovio nos fins de Oitocentos, considerando-o o “grau supremo da síntese” e “a mais pura compenetração que a natureza pode fazer de si mesma”[23]. A estes elementos deve ser acrescentado o factor Nietzsche, que no livro Humano, demasiado Humano, de 1878‑80, fustigou a arte que utiliza os sentimentos religiosos para comunicar elevação e entusiasmo, valendo‑se da “superstição do génio, dos seus privilégios e das suas faculdades excepcionais”[24]. Nietzsche apontava ao coração do génio romântico e do platonismo influente do seu mestre Schopenhauer, que concebera o impulso genial como libertação dos interesses da vontade com vista à contemplação das ideias eternas no Livro Terceiro de O Mundo como Vontade e Representação.

Por seu turno, a Poética contemporânea, já não doutrinária, mas teórica, racionalista e descritiva, em parte condicionada pelo complexo positivista, negligenciou a categoria do génio mediante uma elipse generalizada das marcas da subjectividade individual. Embora preservando as ideias de “produção” e “engendramento” alojadas na etimologia de génio — o genius romano, espírito tutelar do indivíduo e da família —, transferiu a instância produtiva para a esfera do próprio produto e para os domínios positivos do descritível, ora o espaço imanente da materialidade textual, tomado como criatura criadora da sua própria criação, ora o universo extrínseco das determinações factuais, mecânicas e objectivas, como, por exemplo, o documento, o subtexto, o intertexto, o grupo geracional ou social, a ideologia ou a cultura. No entanto, apesar das inúmeras metáforas epistemológicas da produção, a renúncia ao conceito de génio teve por consequência o apagamento da potência criadora na sua singularidade irredutível, favorecendo uma ideia escolar, em grande medida anti‑romântica, da actividade poética como trabalho artesanal sintonizado com as convenções dominantes, literárias ou científicas.

Em Portugal, no ano de 2003, quando foi coligida a obra poética de Daniel Faria, os críticos e os académicos encontravam-se nesta situação estagnada que omite o “princípio vital” e as causas imanentes da sua manifestação na poesia. Daniel Faria poderia ser apreciado como um poeta com poder de expressão ou como um poeta iluminado ou vidente, mas apenas no âmbito de uma antropologia, positiva ou negativa, faltando compreender que o poeta lido nos seus versos é a aparição desse princípio vital e de uma energia rítmica, não só acentual mas também prosódico-semântica, intrinsecamente necessária para que qualquer tom, maior ou menor, consiga ser reconhecido como tal.

Recordemos a lição de Kant sobre o assunto: “Génio é o talento (dom natural) que dá a regra à arte. Já que o próprio talento enquanto faculdade produtiva inata do artista pertence à natureza, também se poderia expressar assim: Génio é a inata disposição do ânimo (ingenium), pela qual a natureza dá a regra à arte”[25]. O poeta enquanto natureza que dá a regra à arte é afinal a expressão libertadora do ritmo, de essência corporal, contra o constrangimento do metro, de essência matemática e inibidor do entusiasmo. O verso é então uma unidade rítmico-emotiva e não um algoritmo. A distinção feita por Paul Valéry entre a prosa como marcha e o verso como dança esclarece o que há de específico nesse novo canto que a Modernidade inventa com o verso livre, subordinando o carácter social e convencional do metro ao carácter pulsional e corporal do ritmo.

Walt Whitman foi o grande libertador do verso, e ficamos rendidos, por exemplo, a “Song of Myself” e “I Sing the Body Electric” de Leaves of Grass. Mas essa libertação do verso, oficialmente ocorrida nos anos 1880 em França com o nascimento do vers libre entre os poetas decadentistas e simbolistas, tem com Whitman, em meados do século, uma origem bíblica e versicular que explica o seu canto explosivo que Fernando Pessoa iria imitar através de Álvaro de Campos e que poetas da beat generation como Allen Ginsberg e o nosso Ruy Belo iriam refinar com uma batida por vezes inebriante.

Se lermos estes autores e percebermos que o seu segredo, desde Whitman, é o recurso a uma prosódia de entoações ascendentes, a uma retórica da repetição e ao paralelismo de matriz versicular, teremos a via encontrada por Daniel Faria. Em primeiro lugar, as inflexões de voz que o poeta passou a registar nos seus livros de maturidade e que atingem proporções massivas nos poemas de maior poder e impacto. A disposição das palavras passa a obedecer a combinações de segmentos melódicos segundo o tom mais adequado à matéria da significação: ora uma parte ascendente da frase, chamada prótase, que vai culminar num acme (ou clímax) para se inverter num movimento descendente ou apódose; ora uma melodia que começa em sentido descendente para se resolver num movimento ascendente.

Não existe nos poemas do Autor uma monotonia semelhante a uma linha horizontal, mas uma espécie de electrocardiograma com variações de tom que tornam a voz emocionalmente modulada e profunda. Na passagem para os livros da idade adulta, o poeta passou a privilegiar a elevação do tom e a parte ascendente da frase, retirando mil e um efeitos de surpresa no modo como foi variando o desenvolvimento da linha melódica. O facto de a oração principal estar numa da partes do período, ou do verso, e de a oração subordinada aparecer antes ou depois faz toda a diferença no modo como a matéria verbal é percebida e na sensação da sua força emotiva, consoante a escolha melódica da expressão poética, que neste caso tende para uma cadência dominada pela prótase. Já Demétrio, discípulo de Aristóteles, destacava a elevação de tom ou epanástasis no tratado Sobre o Estilo[26], fenómeno que figura entre as causas motoras do tom maior do poeta. A par do incremento do verso de arte maior (com oito sílabas ou mais), a epanástasis é apanágio do poetas maiores.

A vibração rítmica do verbo sente-se no poema acima transcrito, mas o poder desse sentimento estético aumenta se atentarmos na retórica da repetição, em que predominam recorrências e variações como a anáfora, a epanáfora e a epanalepse, tão fecundas na “Ode Marítima” de Álvaro de Campos e de uma fertilidade exuberante nos versos de Daniel Faria, por vezes ligando vários poemas com repetições de palavras ou de segmentos não raro combinadas, sempre com o fim de provocar uma sensação de energia e emotividade amplificada e envolvente. O Autor recorre mesmo a formas especializadas de figuras rítmicas e posicionais como a anadiplose e a epanadiplose, disposições inversas que repetem palavras ou segmentos, respectivamente, no fim e no princípio de dois membros seguidos ou no princípio e no fim do mesmo membro. Para além disso, são frequentes paronomásias e poliptotos, reiterações parciais e muito variáveis geradoras de um ritmo prosódico que reforça a dinâmica da percepção semântica.

Globalmente, é provocado um sentimento de percussão que confere duração, altura e intensidade ao sistema da entoação e aos regressos dos timbres vocálicos. O retorno periódico de sonoridades semelhantes, em relação de homofonia, como a aliteração ou a assonância e todas as similaridades fónicas como a rima e a paronímia, engendra uma textura figurativa que contamina e expande o sentido percebido, convertendo a eufonia do poema em euforia do leitor. Nesta estética tão condicionada pela configuração rítmica, o paralelismo sintáctico, que Whitman e Daniel Faria importaram da Bíblia e da Oratória, gera no leitor um efeito de excitação e uma ênfase dramática que intensificam o tom profético de ambos os poetas e transmitem energia às estruturas semânticas produtoras do sentido. No fundo, estamos perante uma evidência que Paul Valéry expôs num dos seus textos mais conhecidos: a poesia utiliza “para os seus próprios fins as propriedades fónicas e as possibilidades rítmicas do falar, que o discurso ordinário negligencia. […] O poeta que multiplica as figuras não faz portanto senão reencontrar a linguagem no estado nascente[27].

Todos estes aspectos que acabo de salientar têm plena manifestação activa e operativa no poema acima transcrito, “Ando um pouco acima do chão”. Vejamos agora, com outra lente, o poema talvez mais poderoso da obra do autor, com que significativamente abre o seu melhor livro, Homens que São como Lugares Mal Situados:

Examinemos um homem no chão

Testemos a transformação de um homem por terra

A sua natureza tão diferente da lava, a sua maneira mineral

De adormecer.

O que mais interessa é ver o seu lugar rodando para perceber o eixo

Que o move no mundo

Ou como pode a sua posição orientar as aves e os astros.

 

Interessa também a pedra que ele agarra como alimento

Ou que mão escolhe par lhe servir de funda

— se é que não usa a própria boca para lançar o grito.

 

Examinemo-lo quando desperta para percebermos de onde vem

Para sabermos se o caminho se repete. Se abre os olhos

Prontos a receber imagens ou então como alguém que desmaiou

Ao chocar contra si próprio.

Interessa perceber os motivos da colisão, se acaso

Terá mastigado a pedra até a misturar no sangue.

 

Examinemos a sua semelhança com um meteoro que cai

Uma fisionomia sem vocação para subir ao céu

O peso do seu corpo quando o nosso olhar o levanta.

Interessa perceber o íman que cria para nós um lugar junto dele

Um lugar dentro dele. Há um olhar que nos desloca —

A placa giratória do amor?

 

Interessa também o coração que ele agarra como fruto que colhe

Ou que veia abre no corpo para beber

— se não é que é a pedra o que ele bebe com as mãos.

 

Examinemo-lo como quem sai de casa e vê o seu irmão

Examinemo-lo voltado, em viagem, a orientação discreta

De quem cava no peito a bússola.

Interessa reparar como tropeça no mistério

E se levanta a pedra para compreender.[28]

São abundantes os exemplos e posso destacar a série que principia com o verso epónimo “Homens que são como lugares mal situados”[29], em que se propaga uma rede de figuras de repetição, da fonética à sintaxe, por quatro poemas saturados de variações do vocábulo “Homens” e seus contextos, por meio de associações de ideias que se acumulam, sem caírem na enumeração caótica do surrealismo, graças à anáfora e às figuras paralelísticas que criam um centro de gravidade e assim sustentam a construção. O milagre é esta estética das figuras rítmicas não cair numa estética do contraponto ou do serialismo, preservando um sentido de construção que sustenta o tom maior sem perda de equilíbrio e referência. A tónica aparece sempre sob vários aspectos, inclusive mediante sílabas átonas que se repetem como partículas agregadoras, num tipo de paralelismo que chega a basear-se numa simples preposição, como no poema “De veres o meu lugar. De me veres só”[30]. Ou então, a coroar o livro Dos Líquidos, na secção “Do ciclo das intempéries”, a tónica gravitacional como uma espécie de cursor — a “magnólia” — atravessando a série dos poemas, exemplo magnífico do ritmo prosódico-semântico ao nível da própria palavra[31].

A poesia de Daniel Faria é por vezes reduzida ao seu poder imagético. De facto, ela é uma poesia da imagem, mas essa imagem sem imagismo, mesmo quando representa o invisível, é caracterizada pela diatipose ou descrição vívida, considerada por Longino uma das figuras do sublime e muito próxima da hipotipose ou ekphrasis[32]. Contudo, a tipologia das imagens é muito vasta e parece suficiente ressaltar o papel enigmático, no Autor, da rainha das imagens que é a metáfora, marca do génio criador e original nos melhores tratados de Poética e Retórica, a começar nos de Aristóteles. Entretanto, felizmente, é necessário ir mais longe e mais fundo, até ao coração da imagem peculiar de Daniel Faria.

Se voltarmos ao poema há pouco transcrito, perceberemos sem dificuldade que ele se oferece como promessa de análise de um homem, sem que todavia se desenvolva por meio de juízos analíticos. Pelo contrário, move-se contraditoriamente, propondo exames e análises mas produzindo juízos sintéticos, típicos da sua imagética. Noutros termos, ele diz “examinemos um homem”, mas tudo quanto é predicado desse sujeito que é o homem não faz parte dele. Ora, quando o predicado não faz parte do sujeito, mas apreendemos ambos numa síntese, temos um juízo sintético, muito característico da poesia mais inventiva, e em particular da metáfora.

Os versos “Interessa perceber os motivos da colisão, se acaso / Terá mastigado a pedra até a misturar no sangue” traduzem um juízo sintético, porquanto, no senso comum, um homem não mastiga a pedra e muito menos a mistura no seu sangue. Estamos perante uma ruptura de isotopias, ou coerências de sentido, que criam novas ligações semânticas ou alotopias. O mesmo sucede mais adiante, no verso “se não é que é a pedra o que ele bebe com as mãos”. Ou, ainda em grau extremo, nos versos de belo efeito “Uma pedra incendiada. Pego-a com ambas as mãos / Levo-a à boca e das chamas bebo / Água”, de Explicação das Árvores e de Outros Animais[33]: a série de alotopias entre os elementos é óbvia, as imagens não são senão juízos sintéticos de sujeitos e predicados distintos mas percebidos como inclusivos e idênticos na sua alteridade. É semelhante o caso hisperestésico do verso “Estendeu a mão e deu‑me um vidro a provar”, no poema “Acordei dentro do poço”, de Homens que São como Lugares Mal Situados[34]. Ou, no mesmo livro, “Ela pegou na minha tristeza e começou a dobar”, de “Assemelhei-me a um xilofone de silêncio”[35]. Ou, mais adiante, na anáfora transtextual “Examinemos também a escrita”, as imagens sintéticas “A pedra onde corre o sangue” e “Põe a boca na palavra líquida”[36]. Por fim, em “Do Livro do Apocalipse”, de Dos Líquidos, “ele sabe que o cordeiro é uma pedra que está ferida”[37]. O poeta é um vidente que sonda correspondências interiores, por isso afirma ser aquele “que descobre” e “que vê primeiro”, como acima se destacou. A poiesis é uma heuresis, criar é descobrir para o poeta, como que numa ressonância de Rainer Maria Rilke.

O factor decisivo que contribui para a percepção de um poeta maior é o investimento desta poesia na categoria estética e moral do Sublime. Grande é o que resiste ao reexame frequente, ensina-nos Longino no seu tratado, e a poesia de Daniel Faria, ela mesma, resistiu ao meu reexame muitos anos depois. Esse é um sinal de sublimidade, que consiste no “eco de uma grandeza interior”[38]. Se pensarmos nas fontes do sublime estabelecidas por Longino, este poeta preenche a sua totalidade: as naturais, grandeza de concepção e intensidade da emoção; e as artificiais ou retóricas, qualidade da fabricação das figuras e expressão de nobreza; e, transversalmente a todas, composição digna e elevada[39]. Sublime, tradução do grego original Hupsos, significa “elevado”. É o tónus ligeiramente tenso da pele peculiar desta poesia que muitas vezes nos transporta para um eixo supra-sensível em que nos sentimos no alto e no profundo, o duplo sentido do sublime. E o poeta, um pouco por toda a obra, procura o “alto” onde vivem os pássaros[40], ou mede o “corpo que se eleva”[41], ou está “em cima” e “perto do cimo”[42], ou caminha “sobre as águas do céu”[43], ou sente-se “ser alto como um astro”[44], ou morre “à míngua do alto”[45], ou, enfim, subirá pelos degraus da casa “Até bater com o pensamento no altíssimo”[46]. O discurso é envolvido numa anástase generalizada que o eleva acima de si mesmo, e é essa dobra que nos fascina.

O génio esconde-se nesse detalhe.


[1] Http://www.casadaniel.pt/20anos/apresentacao.html (“Diversos trabalhos relativos aos seus escritos têm sido publicados em jornais e revistas, dada a virtualidade plurifacetada de um poeta maior”.)

[2] A recolha era apresentada como “a obra de um poeta maior”. “Confidência (Prefácio à Poesia de um Poeta Maior)”, in Poesia, V. N. Famalicão: Quasi, 2003, pp. 9 e 11.

[3] Este ensaio fundamental, recuperado pela crítica estética no último quartel do século XX, quando entrou na ordem do dia a desestetização da arte, teve edição portuguesa como “Do Padrão do Gosto”, in David Hume, Ensaios Morais, Políticos e Literários, Trad. de João Paulo Monteiro, Sara Albieri e Pedro Galvão, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002. Ver especialmente pp. 213-223.

[4] Termos de Gérard Genette que se aplicam à relação de comentário e à periferia textual, como a de prefácios, notas, etc. Ver Palimpsestes: La Littérature au Second Degré, Paris: Seuil, 1982, pp. 9-10, e Seuils, Paris: Seuil, 1987, pp. 10-16.

[5] Este texto tem sido citado pela edição da extinta Revista Electrónica de Línguas e Literaturas Modernas, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Primeira@Prova, n.º 0, de Abril de 2004, e já o vi indexado ao site Triplov.com, mas teve edição física e impressa na revista Apeadeiro, 4-5, Inverno de 2004, pp. 171-185.

[6] Poesia, Ob. cit., p. 39. Os sublinhados, da minha responsabilidade, servem para acentuar as sequências que ilustram a retórica adiante descrita.

[7] “Homens que são como lugares mal situados”, “Mas basta-me um quadrado de sossego” e “Para encontrar o golpe no sono”.

[8] Glossário viquiano de Alain Pons, in Giambattista Vico, Principes d’une Science Nouvelle Relative à la Nature Commune des Nations, Trad. e apresentação de Alain Pons (ed. de 1744), Paris: Fayard, 2001, p. XXXVI. Ver pp. 412-413.

[9] An Essay on Original Genius, Ed. Fac-simile, Delmar: Scholars’ Facsimiles & Reprints, 1978, p. 25.

[10] O Livro do Joaquim, Ed. e prefácio de Francisco Saraiva Fino, V. N. Famalicão: Quasi, 2007, pp. 35 e 72.

[11] Idem, pp. 27 e 67.

[12] Introdução a Genius: The History of an Idea, Ed. de Penelope Murray, Oxford: Blackwell, 1989, p. 6. Ver ainda, sobre este assunto, Edgar Zilsel, Le Génie: Histoire d’une Notion de l’Antiquité à la Renaissance, Paris: Minuit, 1993, passim.

[13] Les Trois Livres de la Vie, Reimpressão da tradução francesa de Guy Le Fèvre [1582], Paris: Fayard, 2000, esp. cap. iniciais. Cf. Aristóteles, L’Homme de Génie et la Mélancolie: Problème XXX, 1, Ed. de Jackie Pigeaud, Paris: Rivages, 1988, passim.

[14] The Debate over the Origin of Genius during the Italian Renaissance: The Theories of Supernatural Frenzy and Natural Melancholy in Accord and in Conflict on the Threshold of the Scientific Revolution, Leiden: Brill, 2002, passim.

[15] Este tema já está rodeado de abundante bibliografia, mas continua a ser fundamental o clássico e notável estudo, concluído em 1964, de Raymond Klibansky, Erwin Panofsky e Fritz Saxl, que aqui indico na excelente edição Saturne et la Mélancolie: Études Historiques et Philosophiques: Nature, Religion, Médecine et Art, Paris: Gallimard, 1989.

[16] Lord Shaftesbury (Anthony Ashley Cooper), “Soliloquy, or Advice to an Author”, in Characteristicks of Men, Manners, Opinions, Times, Reprodução da Ed. de 1772 com Introd. de Douglas J. Den Uyl, Indianapolis: Liberty Fund, 2004, Vol. I, p. 129.

[17] “A Letter Concerning Enthusiasm”, in idem, p. 34.

[18] “Soliloquy, or Advice to an Author”, in idem, p. 129.

[19] The Complaint: Or Night Thoughts on Life, Death, and Immortality, Londres: R. Dodsley, 1743.

[20] Conjectures on Original Composition, Ed. Fac-simile, Leeds: The Scolar Press Limited, 1966, passim.

[21] The Spectator, Reimpressão de Gregory Smith, Vol. 1, Londres: Everyman’s Library, 1907, pp. 283-285.

[22] São de destacar, nesta cruzada contra os seres excepcionais e a faculdade produtiva pela Psicologia experimental, que explicava as maiores criações humanas pela doença e até pela delinquência, autores como Jean-Étienne Esquirol, Bénédict Morel, Moreau de Tours, Cesare Lombroso, Francis Galton, J. F. Nisbet, William Hirsch e, enquanto divulgador com efeitos sobre os poetas decadentistas e simbolistas do fim do século, Max Nordau com o seu livro Entartung, de 1892-93, que circulou entre nós na tradução francesa Dégénérescence, de 1894, com um impacto de tal modo duradouro que atingiria o próprio Fernando Pessoa.

[23] Giovanni Bovio, El Genio, Trad. espanhola por C. Piñot, Barcelona: Henrich, 1910, pp. 62 e 74.

[24] Humano, demasiado Humano: Um Livro para Espíritos Livres, Trad. de Paulo Osório de Castro, Lisboa: Relógio d’Água, 1997, p. 168.

[25] Crítica da Faculdade do Juízo, Trad. de António Marques e Valério Rohden, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998, p. 211.

[26] Demetrio, Sobre el Estilo, in Demetrio / Longino, Sobre el Estilo / Sobre lo Sublime, Ed. de José García López, Madrid: Gredos, 1996, p. 110.

[27] Paul Valéry, “L’Enseignement de la Poétique au Collège de France”, in Oeuvres, Ed. de Jean Hytier, Paris: Gallimard, 1957, Vol. I, p. 1440.

[28] Poesia, Ob. cit., pp. 119-120.

[29] Idem, pp. 124-127.

[30] Idem, pp. 186-187.

[31] Idem, pp. 327-335.

[32] Dionísio Longino, Do Sublime, Ed. e trad. de Marta Várzeas, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, p. 72.

[33] Poesia, Ob. cit., p. 48.

[34] Idem, p. 142.

[35] Idem, p. 145.

[36] Idem, p. 171.

[37] Idem, p. 209.

[38] Dionísio Longino, Do Sublime, Ob. cit., p. 48.

[39] Idem, p. 46.

[40] Poesia, Ob. cit., p. 43.

[41] Idem, p. 66.

[42] Idem, p. 70.

[43] Idem, p. 84.

[44] Idem, p. 134.

[45] Idem, p. 315.

[46] Idem, p. 214.


LUÍS ADRIANO CARLOS