Uma bandeja com três
palavras para hoje conversarmos, companheiros
que somos da mesma jornada cultural: arte,
ciência e espiritualidade. As três podem
representar para nós o que os amores, no
Renascimento, representaram para Camões: musas,
a inspiração. Conceito fora de moda, o da
inspiração, pois a racionalidade contemporânea
entende que a arte deve produzir-se com
trabalho, suor, lágrimas, e nada de
espiritualidade, apesar de esta não
se confundir com a indesejada religião. A
espiritualidade é a energia que impele a arte
para o sublime.
Inspiração é o movimento oposto ao da expiração. Ora
o que entra pelas narinas, pela boca, pelos
olhos, pela pele, pelos ouvidos, é aquilo que
depois se expira em belos poemas, pinturas e
músicas, e tudo isto exige trabalho, mesmo
quando se trata de automatismo de escrita ou
pintura segundo os preceitos estéticos do
Surrealismo.
O nosso amigo Rui Grácio
deseja que o artista revele e discuta os seus
princípios estéticos, quer dizer, que revele
quais as suas musas, quais as suas fontes de
inspiração, espirituais ou materiais. Todos
criamos de acordo com princípios estéticos,
duvido é que todos sejamos capazes de os
enquadrar filosoficamente, e mais ainda de
sentirmos o seu impulso no momento em que
recebemos a divina inspiração. Este meu
linguajar insere-se na estética do Romantismo,
se bem que as musas, como sabemos de Luís de
Camões, sejam muito mais antigas do que o
Renascimento.
Hoje estamos fora
das muralhas das formas fixas que impediam o
poeta de expressar livremente o que no seu
pensamento fluía, mas somos confrontados com
outros muros, aqueles que nos forçam a deixar um
pouco de lado os princípios estéticos para nos
ocuparmos em primeiro lugar dos princípios
éticos. E esse é um dos pontos na minha breve
alocução de boas-vindas que quero deixar à vossa
consideração.
O primeiro ponto é o do
patriotismo. Ele é muito óbvio nas obras dos
autores africanos, haja em vista a poesia da
Guiné-Bissau, aquela que conheço melhor. Essa
literatura é frequentemente desconsiderada por
ainda não ter abandonado a temática política,
enfim, por persistir na poesia de intervenção. É
certo que sim, as musas destes poetas são a
necessidade de construirem uma nação democrática
cujo governo se atribua o prioritáro objetivo de
criar riqueza que tire a população da miséria, e
posso garantir-vos que não é sem perigos esta
fusão de ética e estética. Só em último caso os
artistas guineenses se dão ao luxo de falarem de
si mesmos. E agora perguntemos: o que será mais
importante? Construir uma pátria ou uma família,
supondo que o falar de si mesmo corresponda a
algo como a poesia de amor?
Segundo ponto. A
modernidade tem por princípio estético
desobedecer a todos princípios, estéticos
incluídos, e nisto se funda a contracultura: ela
é contra a cultura estabelecida. Por isso, que
nenhum estranho imagine que pode exigir dos
artistas que escrevam assim ou assado, pintem
desta ou daquela maneira. Liberdade e
independência acima de tudo. Mas como eu faço
parte da tribo, e a tribo me concede alguma
autoridade, sugiro aos artistas que atuem
segundo o meu princípio estético de maior
estimação: o da mestiçagem. Tem a vantagem de
fundir ética e estética e de produzir resultados
com bom grau de novidade.
Vivemos tempos de inclinação política para uma
direita de tonalidade racista, o que pode ser
perigoso, mesmo para nós, que nos julgamos
brancos, e por isso a salvo. Misturemos temas,
formas, ideias e fluidos. O resultado de
misturar arte com ciência e com espiritualidade
pode ser admiravelmente novo. E pode ser também
uma muralha de defesa contra os novos racismos.
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