Emílio Adolpho Westphalen

NICOLAU SAIÃO

Três imagens e tradução de Emílio Adolpho Westhalen ( (1911-2001)


 

 

 

 

Em meados de Abril de 80, num apartamento lisboeta de uma rua de que já me não lembra o nome, foi-me apresentado o poeta e publicista peruano – nessa altura desempenhando o cargo de adido cultural do país dos incas – Emilo Adolpho Westphalen.

O intermediário do encontro foi Mário Cesariny e o que lhe estava subjacente era a intenção de que eu traduzisse poemas do autor de “Insulas estrañas”, que em 1935, juntamente com outra grande figura sul-americana, César Moro, organizara a primeira exposição do surrealismo havida na sua nação.

Na ocasião, Westphalen ofereceu-me uma antologia de poesia e prosa de significativos autores peruanos e, ainda, deu-me cópia do seu livro “Abolición de la muerte”, que eu viria a traduzir e do qual, em 1981, Cesariny faria uma edição copiografada de 25 exemplares posta sob a égide do “Bureau surrealista Alentejo-Lisboa”.

Relembrando esse aprazível encontro num Abril, hélas, já algo longínquo, envio-vos para 2 minutos de leitura dois poemas do livro citado (no anexo, a capa de minha autoria que cifrou a pequena edição, a primeira aqui aparecida em português de Portugal).

Nicolau Saião

 

 

 

 

 

 

 

 

Amarrado à sua sombra o bosque
Abria caminho às pegadas ardentes
Os faunos carreavam os regatos
E nos cornos da Lua uma flauta trilava
A ninfa na encosta sobre o braço descansava
Estios de florais prestígios
Entreteciam desenredavam as brisas
Nas têmporas da bela adormecida
Como se dois meninos com ele folgassem
Tantas voltas dava o mundo
De mão em mão se via percorrido
De vermes com chapéu de copa e dignidade
Os rios não se atreviam
A tocar a orla das cidades
De longe as cantavam e em surdina
Para não quebrar a quietação das muralhas
Ou turvar no recinto
A clara canção dos menestréis
Ali aparecia a bela adormecida coberta de sóis
Os seus ardentes passos tanto mediam o solo
Como o firmamento
Uma sombra de oliveiras sob os olhos
Murmúrios de água para as mãos
No mar esses olhos flutuavam sempre
E esta rama de loureiro de horizonte a horizonte
Adorno dos sonhos pendentes do céu
Não viste um sorriso fiar uma paisagem
A moçoila rindo com o céu gotejando de suas mãos
Mais sombra me davam as pestanas dela
Que uma alameda sob o triplo peso
De folhas ventos e céus
Não viste entreabrir-se a alvorada
Sobre as neves como uma fronte
Alumiando o sol e as estrelas
E a mão mais clara que a água com seu rumor
Assim me atravessaram desde a manhã à noite
As músicas geladas os dedos de aço
Com cercaduras novas seu rosto não descansava
Já sobre a dália ou sobre a nevada
Já na brisa ou no próprio coração do inverno
E na outra mão o ceptro do estio
E no outro pé o sol do outono
Os olhares carregados de resplendores de oceanos ensolarados
Cruzando o Mediterrâneo os golfinhos saltavam
Nos ares quedavam-se as tartarugas
A moçoila não despertara ainda
A flor era a plenitude dos espaços.

 

 

 

 

 

 

Tristemente descansei a minha cabeça
Na sombra que cai do ruído dos teus passos
Voltando à outra margem
Imponente como a noite para te negar
Abandonei as manhãs e as árvores cravadas na minha garganta
Deixei até a estrela que galopava entre os meus ossos
Larguei mesmo o meu corpo
Como o náufrago as barcas
Ou as lembranças quando as marés se vão
E espalham estranhos olhos sobre as orlas do mar
Abandonei o corpo
Como um cobertor para com a mão liberta
Apertar o cerne de uma estrela molhada
Não me ouves sou mais leve que as folhas
Porque me livrei de toda a ramaria
E o ar não consegue aprisionar-me
Nem as águas tampouco me detêm
Não me ouves chegar mais poderoso que a noite
E as portas que ao meu sopro não resistem
E as cidades quietas para que não note as suas presenças
E o bosque entreaberto como a madrugada
Que busca apertar o mundo entre os seus braços
Ave belíssima que no paraíso irá cair
A tua fuga derribou todas as tendas
E eis que os meus braços fecharam as muralhas
E até os ramos se inclinam para te impedir a passagem
Frágil corça deves temer a terra
E o ruído dos teus passos em cima do meu peito
Já se cerraram os cercos
E o peso da minha ansiedade far-te-á cair
Os teus olhos irão fechar-se sobre os meus
E a tua doçura brotará como os chifres novos
E a tua meiguice crescerá como a sombra que me envolve
A cabeça deixei que rodasse
O coração deixei que caísse
Já nada tenho que me assegure que irei alcançar-te
Pois que tens pressa e tremes como a noite
Talvez eu não atinja a outra margem
Porque não tenho mãos que abarquem o espaço
Entre o que está desperto e o que vai morrendo
Nem pés que pesem sobre o esquecimento
De tantos ossos e tantas flores mortas
Talvez eu não alcance a outra margem
Se a última folha já foi por nós lida
E a música entreteceu a luz em que hás-de cair
E os rios te impedem o caminho
E as flores te chamam mas com a minha voz
Rosa imensa chegou a hora de deter-te
O estio ressoa como degelo para os corações
E as madrugadas tremem como árvores ao acordar

Todas as saídas estão guardadas
Rosa imensa não irás tombar?

in “Abolição da morte”