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MONSENHOR JACQUES GAILLOTT
ENTREVISTADO POR FERNANDA CÂNCIO
Diário de Notícias, Lisboa, 19.09.2004
 

«Talvez o terrorismo nos faça pensar nos outros»

FERNANDA CÂNCIO
Veio a Portugal para falar do futuro da Igreja Católica. É o quê, esse futuro?


A Igreja não é feita para si, mas para o mundo. E este mudou mais nos últimos dez anos que durante séculos. Não se pode repetir sempre o que se fez antes...

E isso, na prática, significa?

Evoluir no plano cultural; no que respeita ao papel da mulher na sociedade, da sua igualdade: não basta reconhecer a igualdade em dignidade, é preciso reconhecê-la nos direitos, inclusive no seio da Igreja. O mesmo se passa com a democracia: nunca houve tantos países democráticos. Não são as ditaduras que vão ganhar! A democracia é a participação do povo, é preciso que também a Igreja se democratize.

Não há democracia na Igreja?

Precisamos de muita mais. Cristo é dono e senhor, claro, não é submetido a eleições. Mas para nomear pessoas para cargos, para debater os assuntos, uma instituição não pode manter indefinidamente um pequeno grupo a decidir por todos. Para mim, a Igreja não é o clero, são os cristãos. Se não houvesse o povo de Deus, não haveria padres.



Ao falar de Igreja pensa-se antes de mais na hierarquia, no Vaticano, nas normas e nas regras que impõe. É uma imagem muito forte -
a Igreja é um Estado com o qual Portugal, há meses, assinou um tratado, a Concordata...

Isso existe, claro, mas a Igreja não é sobretudo isso - há muita gente no terreno que nem conhece um padre e no entanto é Igreja. Mesmo se nos media se fala sempre da Igreja como hierarquia... É pena.

Há então duas Igrejas católicas... A qual pertence? Como bispo, é parte da hierarquia...

Faço parte da hierarquia, mas sobretudo sou parte do povo de Deus.

O Vaticano retirou-lhe a diocese... Qual foi o seu pecado?

Não houve pecado, em meu entender. Não foi um problema de teologia, de fé, mas disciplinar, relacionado com a liberdade de expressão, com a conduta de um padre que diz o que pensa. Mas de certa forma foi uma oportunidade, permitiu-me fazer outro tipo de trabalho, estar aqui hoje, por exemplo...

Não sentiu que devia abandonar a hierarquia; ela é reformável?

Eu sou da Igreja, é a minha família.

E a hieraquia já mudou muito, tem havido grandes progressos...

A última luta da hierarquia foi a de pressionar para existir uma menção ao papel do cristianismo na Constituição Europeia... Que acha disso?

Eu não teria travado essa batalha. Não creio que seja importante. Além disso, seria preciso nomear todas as religiões. É um pouco uma vontade de poder, de estar bem colocado...

O que é ser católico? Que significa, na prática? Quando se diz que um povo é católico, por exemplo, fala-se de quê? Dos que vão à Igreja? Dos baptizados?

É uma prática no quotidiano, como disse Cristo: estava doente e trataste-me, sou um estrangeiro e acolheste-me, estava na prisão e vieste ver-me, tinha fome e deste-me de comer... Não chega dizer que se é baptizado. No centro da religião católica está o amor pelo próximo, o amai-vos uns aos outros.

Teremos então de concluir que há muito poucos católicos.

Claro, não é fácil!

Em França, a propósito da chamada «discussão do véu», o Presidente Chirac solicitou um relatório sobre a relação entre o Estado e as religiões que resultou numa série de medidas, incluindo a interdição do véu nas escolas públicas para menores. Que pensa disso?

Não sou favorável à lei sobre o véu, pois é percepcionada pela comunidade muçulmana, que já tem uma deficiente integração, como sendo contra ela. Além disso, se há um problema com a imposição do véu às crianças, isso resolve-se com uma lei? Não há outras formas, negociações entre os pais e os conselhos directivos nas escolas, etc?

O propósito da lei seria fazer da escola um espaço de liberdade, onde as imposições religiosas, que têm tido consequências terríveis, inclusive violações de quem não usa o véu, não se aplicam.

E agora há o risco de que as jovens muçulmanas sejam empurradas para escolas privadas religiosas, favorecendo a guetização e impossibilitando o papel integrador da escola pública, o de misturar as gentes, viver em conjunto...

A lei também impõe feriados religiosos de todas as crenças, comida adequada nas cantinas... Isso não é lógica integradora, de inclusão?

Uma coisa é o que dizem os políticos, outra é o que as pessoas percebem, e o que resultou foi que a comunidade muçulmana se sentiu penalizada. É preciso também ter isso em conta, quando se faz lei: como é que isto vai ser recebido?

É contra a guerra do Iraque... Como vê o o mundo pós-11 de Setembro?

Não é uma guerra militar clássica que vai resolver o problema. Não há respostas simples. O terrorismo quer defender gente que está na miséria, em oposição ao Ocidente que é rico. Talvez devamos interrogar--nos sobre o que podemos fazer para resolver isso, em vez de aprofundarmos o fosso. O terrorismo nasce nesse terreno de miséria, os terroristas ajudam muitas vezes as pessoas em dificuldade... É preciso criar diálogo entre religiões, com os países pobres, ajudá-los...

Deve-se dialogar com Ben Laden? Ele põe uma bomba, nós perguntamos-lhe que podemos fazer por ele?

Não temos de dialogar com a Al-Qaeda, mas é preciso, certamente, dialogar com o islão. Eles existem! Estão aqui! Vou muito aos subúrbios de Paris, dialogar com os muçulmanos e os judeus. Há pessoas maravilhosas no islão. Claro, há fanáticos, sempre houve, mas a religião não é isso, é a busca do bem, da paz... Não pode haver paz no mundo se não houver paz entre as religiões. E como farão a paz, se não se conhecem? É preciso aprender, deixar de dizer: o meu Deus é melhor que o teu. Talvez o terrorismo nos preste um serviço, nos ajude a perceber que um cristão só pode ser ecuménico. Que é preciso pensar nos outros, interrogarmo-nos.

Mas cada vez mais as religiões, com a sua vontade de poder e de aniquilação do outro, surgem como fonte de conflito. As guerras do futuro, dir-se-ia, serão entre os religiosos e os não religiosos...

Não creio... É preciso separar a religião do poder político, temporal. É uma ligação muito perigosa, porque a religião é utilizada para legitimar a violência. É o que faz Bush, por exemplo, que legitima a guerra dizendo que Deus está com ele...

O mesmo faz a Al-Qaeda. E onde está Deus no meio disto? Que faz ele?

O papel de Deus é o de acordar a nossa liberdade e responsabilidade. Deixa-nos livres para intervir, não devemos esperar que ele o faça. A tarefa é nossa. Muitos pensam que Ele é exterior, mas está em nós.

Então, Deus não tem poder.

É um Deus que se dá às pessoas, é a imagem de Jesus na cruz, a de um homem vulnerável, não a de um Deus todo-poderoso. Está do lado dos pequenos, dos pobres, das vítimas, dos que ninguém quer, não dos poderosos. O que Deus pode, pode através de nós: com amor no coração pode-se fazer muita coisa.