JOSÉ DO CARMO FRANCISCO, O POETA DA BOLA

ESTELA - José do Carmo Francisco, tu és um escritor vinculado à bola, aliás és colaborador de "A Bola", o mais conhecido jornal desportivo português. E eu não sei nada de futebol, o TriploV é um portal dedicado na maior parte às ciências, desveladas e ocultas... Ora noto no teu último livro, "Os guarda-redes morrem ao Domingo" (Padrões Culturais Editora, Lisboa, 2002), uma forte componente numerológica, cuja deriva simbólica me escapa completamente... Ele divide-se em 3 campos, cada campo com 11 elementos: 11 crónicas, 11 contos e 11 poemas...

J.C.F. – Organizei o livro deste modo em 1995 numa espécie de homenagem ao escritor brasileiro Edilberto Coutinho, autor do célebre «Maracanã, adeus», um livro com 11 contos. Só que os contos dele são quase novelas e os meus são quase poemas. Uma questão de volume. Como entretanto tinha escrito uma série de crónicas sobre Clubes desportivos sob o título genérico de «Os emblemas da minha vida», escolhi 11 crónicas. Depois foi só juntar 11 poemas que já estavam escritos e dormiam no silêncio da gaveta. Isto prova que num certo sentido «toda a Literatura é uma homenagem à Literatura».

ESTELA - O desporto é um bom campo de análise para disciplinas como a Sociologia, a Psicanálise, a Semiótica, etc.. E quanto à Literatura propriamente dita? Na baliza da crítica literária, por exemplo, tens metido alguns golos?

J.C.F. – Conheço exemplos notáveis em Itália (Umberto Saba), no Brasil (José Lins do Rego, Mário Filho, Silvio Castro, Nelson Rodrigues), em Portugal (Manuel Alegre, Francisco José Viegas) para citar apenas alguns escritores que dedicaram obras ao futebol. Mas, como tema, o futebol ainda é muito recente na vida da Humanidade. Um século, para a Humanidade, não é quase nada. O Sporting e o F.C.Porto foram fundados em 1906, o Sport Lisboa e Benfica em 1908. O amor e a morte são muito mais antigos, a adultério e o incesto também. Sem esquecer o ciúme e o crime. Este meu livro não marca golos na baliza da crítica. Foi recebido com indiferença pelos jornais e revistas de grande circulação, tirando a excepção do «Expresso» com um excelente texto de Fernando Venâncio. Um grande golo, esse sim, ainda por cima marcado «fora de casa», em Amsterdão, via e-mail.

ESTELA - O prefácio do teu livro é assinado por Dinis Machado, autor de um romance de que gostei muito, "O que diz Molero". Tem por título "Ver o Futebol pelo lado de dentro", assim mesmo, Futebol com maiúscula... Isso dá direito a alguma reflexão: a diferença entre o futebol e o Futebol, o interno e o externo, o visível e o invisível...

J.C.F. – O Dinis Machado é filho de um árbitro (Oliveira Machado) que, mais tarde, foi jornalista desportivo no «República». Ele próprio (Dinis) foi desta «arte» durante muito anos. É natural que o uso da maiúscula não seja inocente (nele, Dinis, nada é inocente) pois a leitura que ele faz dos meus textos sombrios (sua opinião) aponta mais para o Futebol como paixão elugar de festa num quotidiano cada vez mais cinzento. Como dizia o Ruy Belo «num tempo sem religião o Futebol pode ser uma religião e a ida ao Estádio pode ser a semanal celebração litúrgica com 11 sacerdotes num altar de relva».

ESTELA - Nos teus contos nota-se que entre os jogadores há diferenças imensas e que eles são tratados de modo desigual pelos treinadores, às vezes até com mais injustiça do que justiça. É evidente que esse mundo, no teu livro, é um espelho...

J.C.F. – O Futebol é um espelho da Sociedade na qual está inserido. Na Itália por exemplo é vulgar aparecerem bispos, arcebispos e até cardeais a insurgirem-se contra as arbitragens que roubaram o clube da sua diocese. Na Inglaterra por exemplo há mais desportivismo e capacidade de respeitar o outro. Os jogadores quando são derrubados não ficam na relva a fingir que estão lesionados; levantam-se e vão atrás da bola. Na América Latina há muitos tiros e já apareceram vários jogadores mortos. Em Portugal há um clima de suspeição e de desresponsabilização total.

A Federação de Futebol vendeu um bilhete para a morte a um sportinguista do Luso que foi morto no Jamor num Benfica-Sporting mas recusa-se a pagar os trinta mil contos de indemnização à família da vítima. No futebol português ninguém acredita em ninguém. Nos campeonatos dos mais pequeninos que eu acompanho de perto ainda há um certo perfume do futebol dos pioneiros quando o jogo era mesmo um jogo e nada mais.

ESTELA - O futebol move cifrões e multidões, e estar numa bancada a assistir a um desafio importante, com as luzes, os clamores, os cantos, os carnavais dos adereços de vestuário e tal, arrebata e aterra ao mesmo tempo... O que é que te atrai no espectáculo?

J.C.F. – Pessoalmente sou mais atraído pela performance dos jogadores quando eles pegam na bola e «dão aos pés a astúcia das mãos» fazendo autênticas peças de filigrana no relvado. Mas já tenho escrito sobre o furor e o júbilo quando surge um golo no último minuto embora o silêncio da derrota numa multidão também seja

impressionante. Mas hoje em dia o jogo é cada vez mais um espectáculo para ser visto no conforto do sofá. Já não vejo multidões há muito tempo.

ESTELA - Cada uma das onze crónicas é dedicada a um emblema, e até os descodificas, como na do Sport Lisboa e Benfica. Achas que nesses emblemas se guarda alguma tradição da antiga heráldica, com escolha de motivos simbólicos? Qual o valor da emblemática?

J.C.F. – A emblemática é e sempre foi importantíssima. Em «Mau tempo no Canal» de Vitorino Nemésio, o pai da protagonista é um dos fundadores do Fayal Sport Clube e fala no seu emblema. Tem a ver quase sempre com as decisões dos pioneiros que fundaram os clubes. O Sporting, fundado em 1906 por um grupo de rapazes que já andava desde 1902 em Belas a tentar fundar um clube, tem o leão pedido emprestado em Cascais ao Conde de Pombeiro. O Sport Lisboa e Benfica (1908) tem a águia do Grupo Sport Lisboa (1904) ao lado da roda da bicicleta do Sport Clube de Benfica (1906) e foi o ciclismo do Benfica que manteve por esse pais fora a paixão pelo clube nos anos 40 quando o Sporting ganhou sete campeonatos em oito anos. No meu livro os 11 emblemas aparecem porque eu tenho a ver com todos eles: desde o clube da terra onde nasci, passando pelas terras onde fiz a escola primária, o curso comercial, o serviço militar obrigatório, etc. Fiquei ligado a todos.

ESTELA - O futebol funda-se na competição e não há aí grandes meias tintas: do confronto, sai um vencedor e um vencido. O empate só adia a próxima batalha. Como é que tu explicas esta necessidade de vencer?

J.C.F. – Dizem os livros dos historiadores do futebol que os nossos antepassados faziam do futebol um jogo de morte no México por exemplo. A mim parece-me que no futebol actual (fundado numa taberna de maçons em 1863) é, como qualquer desporto colectivo, uma projecção das lutas tribais, dos rituais do confronto, dos

torneios medievais, dos próprios jogos olímpicos da Grécia. Dito de outra maneira: joga-se pelo fascínio de vencer mas sem adversário não há vencedor nem vencido. O erro crasso está em tratar o adversário como inimigo. Isso é voltar ao tempo das cavernas. As crianças também gostam de ganhar os seus jogos. O jogo é inerente ao ser humano, faz parte de nós - penso eu que sou apenas um prático, um repórter e nem sequer sou antropólogo.

ESTELA - As personagens e pessoas que desfilam no teu livro, desde os contos aos poemas, transportam mais a amargura da derrota do que a alegria da vitória, e por motivos não directamente relacionados com este ou aquele desafio. Aliás o título já de si é o mais eloquente possível dessa disforia, e é com a mesma tristeza que remata: "Os guarda-redes morrem ao Domingo". Ou seja, tudo é visto não do lado de dentro ou de fora, não do lado de quem ataca, sim de quem se defende de uma agressão...

J.C.F. – É um lugar comum mas num certo sentido é mesmo assim: não se faz boa literatura com bons sentimentos. Dito de outra maneira: as pessoas felizes não têm história. Manuel Alegre leu o meu livro de uma maneira especial e diz que não esquece o conto em que uma selecção de futebol ao regressar de Paris, atravessando uma França dizimada pela ocupação alemã, viaja dividida entre os directores que têm tudo (compotas, conservas, vinho, pão) e os jogadores sem nada a quem foram dados alguns francos franceses inúteis pois não há nada para comprar nas estações onde o comboio pára. Atirar as moedas pela janela fora é uma resposta feita de raiva e revolta. É uma história de proveito e de exemplo como as velhas fábulas.

J.C.F. – Muito complicado mas não vejo motivo para desistir. O facto de o meu livro «Os guarda-redes morrem ao Domingo» ter estado sete anos à espera de publicação é já em si um sintoma do terrível sistema cultural que temos. Portugal é um país de analfabetos. Depois os que podem ler deparam com muitas opções erradas. Julgam que o melhor é o mais conhecido mas não. O melhor é sempre o mais importante. No tempo do Eça de Queirós o mais conhecido era Pinheiro Chagas, no tempo do Cesário Verde o mais conhecido era o Cláudio Nunes, no tempo do Camilo Pessanha o mais conhecido era o Augusto Gil. Ter muitos

leitores é importante mas não é o mais importante. Nos anos 50 o Jorge Luís Borges escreveu que «a literatura passa por uma fase comercial muito chocante e desagradável» e isso não o impediu de chegar onde chegou sem nunca ter transigido com o lado comercial. O meu lema continua a ser hoje como ontem: «Tudo pela vida, tudo pela literatura, nada pela vida literária!»