Em tropel até à cova

 

JOÃO PEREIRA DE MATOS


Dissesse qualquer coisa, pela graça, em redondilha. Dança, contra-dança, em tropel até à cova. Eis a história dele. O abrigo dos imensos penedos levou as mulheres a achar refúgio, onde estavam já tantos algarvios, com fome e onde já eram poucas as casas. Aconteceu em Maio de 1591.

A curiosidade de Miguel de Frades, ao tempo, fugido por lá, levou-o a cair d’amores por bela trigueira.

Seria esta, Maria de Jesus, de seu nome cristão, levada a sua casa e a matar um amigo, Dinis, ao túnel do Mar, mas isso seria depois. Entretanto o bebé,  juntava o mesmo custo-pecado e a ilicitude. Os religiosos que por lá pasmavam não acharam bem, estranharam a despojada abertura moral, não querendo que se equiparassem à dura-verdade de Mafona, daqueles negro-marroquinos  que, desde  crianças, não houveram um dia em que se incluíssem como simples civis da sua Igreja.

Viveram dez anos de concubinato, na faina de todos-os-dias, pedindo a todos-os-santos o de comer, trabalhando onde aparecia, quando aparecia, e se aparecia.

Não existia tempo naquela angústia quotidiana, ocasionalmente havia conversa, ao serão, e feiras, nos dias santos, nos mais dos dias mais requintes apertavam, o regime  foi sempre de um estranho e triste papel à mulher. Foi pouco avançado, pouco ensaiado, não tinha corpo, havia nada, não se imaginava a cena. Mas Dinis, há pouco ali chegado, avançava. No outro lado, a mulher. E, pelo seu papel e, por fim, não existia tempo de resposta, o nosso Dinis entra na faina do outro, no afecto de Maria de Jesus. Na faina de todos-os-diabos, em liberdade da honra, Miguel confronta Dinis, julgara-o amigo, confiara. Mata-o. Atira-o ao mar. Foge. Mas não escapa, moído de pancada, soçobra, quebrado de corpo como pesado de alma, sem extrema-unção, confissão e em pecado.

Que será do filho dos dois que lhe é proibido vingar a gorada fuga? Garanto-vos que gostaria de ver-se ouvido, quando chegar a idade, pela morte do pai, mas não conseguirá resistir ao desejo de fugir daquela praça, irá pelo mundo, o pai ficou-se ali. «Estou a tentar. Ganha-me, Pai, vai adiante para as terras de onde não há retorno. Mata-los-ia, mas, no meu lugar, vou numa caravana nos verdes anos e os dias, durante semanas, serão curtos de tanta novidade. Irei ter com o tio, galego, que vende sabonete e café, para tal vendedor devo frisar: nada é preocupante. Na realidade, quando eu lá chegar serei bem recebido».

A Mãe não é tola e enviou missiva e tem garantias. Aqui só resta a morte. A memória da morte. Recebeu resposta. «Con cuidado, guarde a su hijo».

«Quando for, aprenderei mester. Aqui, na taberna, homens perigosos de voz cheia, gritos. Temeraire, o meu amigo francês, assim chamado porque é afoito, espera com muita expectativa a noiva em sua aula de ensino natural. Protege-me. Os ventos da desgraça, no entanto, sopram folgados e a má-sorte anda à’spreita. Assim é e por isso me vou, quando puder».

Foi. E passou em Castelo Rodrigo e viu a água,  tépida com fama de limpezas da alma, corria ela na beira de uma formosa estrada aberta. Foi bem noutra estrada, lá deslizou para um lar, deu-se nas moitas a linda donzela ou foi ela que a ele se deu. Passou na Batalha e no Mondego. Felizmente no terreno mais espinhoso os bons préstimos hípicos até às zonas mais altas do litoral, também, nomeadamente, durante o inverno, mas essas paisagens têm, com a respectiva vertigem geográfica, unha com as castas maiores da matriz gigantesca do Pinhal de Leiria, onde é notório que um país, afinal, tão pequeno ainda custa a atravessar. E assim, perambulou por longo tempo, não sabendo onde se fixar, espírito inquieto e tenaz.

Como pude descrever, em torno do panorama de tarefas de cariz civil, bem como à contínua interrupção da via pública, com aqueles três incêndios que não conseguiram deixar alma de cristão descansada e fim à vista às labaredas, esperemos que nos séculos vindouros acabe a aflição, ele perdeu a visão ousada que tinha desde o tempo em que chegou ao concelho, tal foi o susto. Uma surpresa, toda uma vida.

Reconhecendo que não era possível mostrar o que habitualmente valia, dedicou-se, mais alto do que em qualquer hora, em quatro períodos de cinco meses, a mostrar o seu préstimo na educação dos ignaros, fossem infantes ou adultos, aproveitando o longo saber de Temeraire, o que será feito dele?, é por isso, como se vai saber, esta fase que ficou sendo, até agora, ainda mais virada  para a queda para a política, para a desenvolver e, consequentemente, para evoluir de uma forma mais profunda, com a admiração e respeito que granjeou de novos e velhos.

Participou nas reuniões da fidalguia. Irá a Lisboa, talvez, tentar a sorte. Ainda que de origem modesta, a afável simpatia, os amigos influentes e o ar de industriosa serenidade eram auspiciosos para o jovem. Foi. Mas não contou com o dragão das guerras de sinos e frades de alto valor para quem quer singrar. De tornar mais dificultoso ou ágil o acesso aos altos lugares do reino, pelo menos àqueles acessíveis a alguém de sua extracção. Um frade amigo, generoso, lhe ofertou bons conselhos que muito proveito lhe deram, portas s’abriram, as certas, d’acesso aos amplos círculos, aos rarefeitos ares, aqui d’el rei, somos todos amigos e se és dos nossos serás recompensado. Enfim, casou, mal pareceria se o não fizesse, montou casa, será, a seu tempo, fidalgo de brasão novo, coisa rara, sem pai iminente, morto à paulada na má curva de um caminho pior, ou família d’antanho, será o orgulho do tio, o consolo da mãe.

E sempre foi vivendo sem olhar para estranhos, mas cuidando dos amigos, sem sair de casa como seria se se entregasse a esbórnias e vida-má, mas sem deixar de  jantar com os amigos, conhecendo-os, de uma cabeça à outra, como quem contou a travessia de tesouros em terras de Vera-Cruz.

Teve cinco filhos a quem tentou prodigalizar educação d’esmero, infantes e príncipes, até para as Inglaterrras, terra de aprumos e as meninas para França.

Não temos tempo para perguntar se não há casos de pai e filho enganados na má-sorte ou Destino. Mas é bem compreensível que o Fado, dizendo que o partilham, cumpra o lema antigo: como foi com o Pai, assim será com o filho.

Pai e filho, magoando-se da raiva, seguem a estrada, há muito prevista, de cedo se precipitarem para o vazio.

O médico estava de mãos atadas. Depois de uma curta viagem a terras do Sado, uma febre terçã o levou. Ainda jovem, ainda com tanto por viver.

Tanta fúria, tanta lide, tanta sorte, em tropel até à morte.


João Pereira de Matos