MARIA AZENHA
Em cidades estranhas
os objectos tornam-se estrangeiros.
Há no entanto outras violências:
quase sempre a minha mão
alongando-se
de uma sombra a outra.
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Cabeça de mulher encontrada dentro de saco de plástico
Saco de plástico encontrado no bolso de um homem
Esse homem outrora escreveu uma redação
com uma frase
A frase foi encontrada na barriga da mãe
MENSAGEM ENCRIPTADA
008 088 007 037
revólveres
monótonos modernos cavernas
depósitos
rápidos
ávidos
tortos
códigos
pássaros selvagens
o silêncio começa com sapatos pretos sem memória
(B)yron veio ao mundo com uma deformidade
em um dos pés
008 088 007 037
alguns códigos
TEATRO
I QUADRO
sonhei que 3 mulheres saíam de uma caixa
estavam por detrás de um palco com 3 vozes
na televisão só uma folha
caindo
aos pedaços
na poeira da sala
as 3 mulheres trajavam-se de mulheres
com os pulsos amarrados a um mastro
o mastro era uma jaula
com a forma de prisão
II QUADRO
não estou a sonhar agora estou a olhar para fora
as 3 mulheres saindo da caixa entram e saem
com 3 copos de água cheios de sangue
uma é banhada num alguidar a quatro mãos
a outra segura 3 toalhas que exibem 3 lágrimas
III QUADRO
quem está no teatro? quem fala na sala?
as 3 mulheres trajadas de mulheres
estão ancoradas em balas
encontro-as às vezes em bosques de azeite
dançam num lago de trevas
AMO-TE
Amo-te.
O homem não entendeu este som.
Amo-te.
A mulher não ouviu nada.
Amo-te.
A criança brinca à cabra-cega
FINAL DE UMA ENTREVISTA DIANTE DO POETA
O que é uma árvore?
É Nossa Senhora vestida de verde
De que cor é ela?
É verde. E amarela
O que é uma mulher?
É a lava do infinito
O que é um telemóvel?
É o eco duma toalha de prata
O que é a Noite?
É um verso do Caos
Quem é Deus?
Um músico obcecado pelo anonimato dos séculos
Quem é o teu irmão?
A branca de neve vestida de candelabro.
Onde fica a Europa?
Nas escadas do metro
Para que servem as galáxias?
Para conhecer a vida dos poços
O que é o Silêncio?
Uma borboleta grávida
O que é uma esfinge?
Uma mãe sem memória coberta de pedra
O que é uma bailarina?
Uma bicicleta em (des)movimento contínuo
E o que é uma estrela?
É uma estrada
Quem é Van Gogh?
Uma orelha com Deus ao colo
E o que é um gato?
É um cão
O que é um cão?
Um pássaro de luxo com patas
Quem é o Cavaco?
Um manequim do século passado
O que é uma selfie?
O véu de Baudelaire sem o António Maria Lisboa
O que é um Sábio?
É um sapo
E um poeta?
O laboratório do Nada.
HÁ POETAS QUE SÃO RAROS
Há poetas que nos matam, que nos comem, que nos tragam.
Há poetas que voam como pássaros no vazio de cada página.
Há poetas condenados a fantasmas.
Há poetas no silêncio de anjos indomáveis.
Há poetas corredores, poetas-pedras
Poetas em letras gordas com seus tambores.
Há poetas sábios difíceis de imaginar num livro de contas.
Há poetas consagrados na ponta dos sapatos.
Há poetas convertidos a formatos da web.
Há poetas quadrados, minuciosos, fechados em misteriosas sombras.
Há poetas em lua de mel arruinados pelas folhas do outono.
Há poetas trintintim de um momento para outro.
Há poetas-séculos com raízes em arbustos
jorrando poemas pelo nariz e pela boca.
Há poetas Via Ápia que vivem com suas madres em gaiolas loucas.
Há poetas calcinados por relâmpagos.
Há poetas que compõem cânticos a partir de um monte de escombros.
Há poetas do acaso. Há poetas solitários.
Há poetas brilhantíssimos. Há poetas de visão olímpica.
Há poetas “likes” pela Lei dos grandes números.
Há poetas académicos. Há poetas melancólicos.
Há poetas da liberdade.
Há poetas surrealistas.
Conheço alguns. São raros.