Elogio da divergência

ELISA SCARPA
Participação no V Encontro Triplov na Quinta do Frade . Casa das Monjas Dominicanas . Lumiar (Lisboa) . 17 de março de 2018


1

Do juízo ao juízo próprio

Sem dizer nem principiar

Valor e limite da circunstância

Intuição cabresta

Desta elementar ontologia

Banal e decrépita

Que é a porra da lógica

De estar vivo!

 

Estamos a falar

Entre o significado

E a lei do significado.

Entre o carimbo

Que te colocam na testa,

E a testa, que acreditas que tens.

Não podes afirmar,

E se pudesses

Metias o rabinho

Entre as pernas,

E ias mijar de aflição

Na primeira esquina

Escondida.

 

É preciso estar de acordo

Comer na manjedora pública.

E se um tirano

Te vier comer as tripas,

Tanto pior!

E lavar-te a fala

De qualquer sentido,

Tanto pior!

A ciência cognitiva é do melhor que há:

Dois ramos de sálvia são 2 ramos de sálvia.

Acima de tudo

Não te contradigas

Mas queremos que digas,

Anda lá

Anda lá

Conta-nos o que viste

 

Conta-nos o que viste

E ouviste

Vá lá, conta lá

Deste chão de pedra fechado

Deste afastamento das galáxias

Deste aquecimento progressivo

Do universo

Vá lá, conta, a mais elevada

Dor do choro indecente

De chorares por ti

E das impotências.

Esta contracção mútua

Conta-nos o que ouviste

E viste.

A densidade da razão

O rigor de um corpo morto

A força de ser imbecil,

E de o poder afirmar.

Conta o que viste e ouviste.

O hidrogéneo que se transmuta

Rapidamente em núcleos pesados

A falta de gasolina que não

Deixa o carro andar

As estrelas que param em fila

No pavimento imundo do céu

Conta o que viste e ouviste.

Dá uma segunda explicação

Para esta porra toda,

Porque a primeira explicação

Que deste,

Não foi explicação, não chegou,

Não chega o que viste e ouviste

Não chega o conhecimento dos

Capítulos precedentes.

Não chega.

Diz-me o que viste e ouviste.

Outra vez

Explica-me

Como a matéria é mole e maleável.

Temos de supor que sabes

Falar.

Temos de supor que sabes

Pensar.

Conta-nos o que viste e ouviste

Mais cedo ou mais tarde

Não te lamentes

De não o ter dito, de não o ter

Visto.

Não é com interrogações

Embaraçosas

Que vais conseguir escapar

Sem dizer o que viste e ouviste.

Permaneces na transição

Ão ao ão

Permaneces na transição

Que também dá canção, acção e mergulhão.

Traz os teus olhos e os

Teus ouvidos

E conta o que viste e ouviste.

Porque neste tempo de profundas

Mudanças

O que tu viste e ouviste

Não tem o menor interesse.

Por isso conta lá o que viste e ouviste

Para eu, não poder ver, e ouvir,

Para nós, não podermos ver e não ouvir!

 

 

2

O alcance da força da gravidade

Aparenta não ter limites.

Isto é muito grave,

E podemos dizer isto, com uma

Voz muito grave.

É grave

Morreram hoje

Milhões de pessoas com fome.

É grave muito grave.

Todo o mundo tende para a entropia

É grave

É muito grave porque não podemos

Fazer nada, nós os que estamos

Vivos não podemos fazer nada,

E os mortos por maioria de razão também não.

É isso que define a gravidade, não

Podermos fazer nada.

É isso que define o estar morto,

Complica-se a definição

De mortos e de vivos

Ou a definição

De mortos, semi-vivos, semi-mortos

Mortos não

Quantos os que aqui estão.

São mortos, semi-vivos,

Semi-mortos, mortos

Quantos são os

Que não podem fazer nada?

Milhões, em cada ocasião!

 

 

3

Quanto mais nos afastamos do centro

Mais outro centro se aproxima

O súbdito do czar sorriu  à noite

Sorriso de igreja debruado a dourado.

No fundo de tão cioso sorriso

Guarda milícias,

As Que partem a bordo do paquete,

Junto ao czar.

Agora que os russos já não canonizam nem czares,

Nem comunistas,

O que  poderão canonizar ?

Já esquececeram o Estaline curvado sobre a mesa

A ler o Pravda.

 

A fama com ele teve sucesso

Quanto maior o sucesso da fama menor o do Autor.

Não não foi um vigarista astuto,

Foi um,

Dos que viram matar uns,

Deixar morrer outros

E olharam para o lado,

Para o objectivo maior,

Para a proximidade primitiva

De governar.

 

E pensar que o súbdito do czar

É agora nesta Pravda bolchevique

E depois, e agora novamente súbdito.

 

É possível nas páginas dos livros

Contar os mortos às centenas

E ler os sofrimentos dos que tiveram

Que cumprir

Os designíos da grande Obra

Oursins de l`Éstaque

Servidos com Mouet Chandon

E o papel dos indolentes estúpidos

Cumprido na perfeição

De obedecer e morrer.

Quem te mandou ir pelo carreiro?

No centro, na praça, é que estão os grandes homens que nos governam,

Nestas paisagens não há corredores fétidos

Nem arranha céus

Nem verdes campos com ovelhas pascentes,

Só praças onde os que governam

Querem subvserviência como honrra

E estupidez como odediência.

É aqui e em mais nenhum lugar

Que se perdem os olhos e os ouvidos

E se erra cego e surdo por entre

O som daqueles que vão caindo

Cansados …

Mas estes homens que mandam têm mistério,

É no chelindró das suas biografias que muitos

Refocilam.

Foram grandes homens

Confessaram-se grandes homens.

É no calafrio voluptuoso de tal adjectivação

Que podemos e somos abjectos!

Acabo de comer a minha refeição à dentada

Se calhar tenho uma grande boca, ou sou apenas uma grande alarve?

Ficamos todos sentados, ao seu lado, na mesa

A ler o Pravda e a comer omolete de amoras.

Durou pouco tempo, porque muito destruiu,

Mas tinha carácter, enquanto outros partiram os Pulsos junto ao Muro das Lamentações?

Brutalidade versus Lamentalidade!

4

Assisto assim à vontade de digerir o mundo

Vontade de enlouquecer

Ou isto já é uma forma de loucura?

Assiste-se a um espectáculo

Não há vida

Isto é de mau gosto

Sabe mal

Pior que mal

A merda

Assistir à decomposição

Mental do próprio

Ou assistir, já  é um sintoma de decomposição

Mental do próprio?

Podemos ficar eternamente a falar com os Mortos

Um exercício militante de passividade

Falar com os mortos

Exercícios de voltar para trás

Mesmo

Quando eles estavam à frente

Exercício de prolongar o nada

Rétórica

Prolongar a passividade

Disfarçada de discurso

Porque é que os cordeiros se querem enfiar

Nas tocas dos coelhos?

Porque é que procuram os ovos da Páscoa?

Porque é que os coelhos se enfiam

Nas barrigas das ovelhas que pastam?

Porque é que querem voltar a ter mães?

Perguntas sem resposta

E porque é que

Os elefantes se riem dos cordeiros? Porque é Que na floresta, só se pode ser natureza?

Indústria do sentir

Cansada de julgar

Cansada de avaliar

Assim morrem os caçadores em caçados

Não há tempo para os indiferentes

Quem ignora cede lugar aos que não querem.

Ignorar é do lado em que elas acontecem,

Aquecer aos raios do sol

As mãos e o rosto,

Empurrar com a barriga ou com as costas o Inverno

Encostar às boxes o outono

Adormecer com doce canto

A primavera

Só calor

Quentura de forno

Assar como um pastel de nata.

Mata e mata

Que parecidos que são

A nata mata

A mata cresce com as natas

Não é igual uma mata que cresce ou uma mata Que arde

Uma mata que dorme ou uma mata acordada

Um nata que se come ou um nata que se proíbe.

 

 

5

 

_ E agora vamos à parte séria,

Vá, semblantes carregados!

(A elogiadora faz um gesto de mãos

Como se estivesse a dirigir uma orquestra)

_ Vá preparem-se!

   Preparem-se…

_ Já estão preparados?

Um,  dois,  três:

TOC-TOC lá vai a moleirinha

Toc-toc lá vai a moleirinha

Com o burro pela arreata

TOC_TOC_TOC

TOC-toc-toc-toc-toc-toc

Porque não tem o burro

Humana voz para dizer toc-toc-toc-toc

E a moleirinha

Porque não enxuta as moscas

Com a adejante cauda

E porque não tem ela

Orelhas grandes e olhos doces?

E já de agora,

Força de cavalo

Para carregar os sacos de farinha?

E quando passam os dois juntos à Várzea

Dos Amarelos

Os sapos cantam todos a mesma tontina

Toc-toc-toc-toc-tocv-toc-toc-tov

_ Ah tirem-me deste ámen colectivo!

Tanto consenso adormece

Tanta abstinência de opinião irrita

Convirjam os heróis

E os génios para a fossa asséptica,

É isolá-los,

Antes que contaminem os outros.

Derretam as velas e os santos

E os ganidos de nostalgia

Onde se encarceram

Os convergentes.

Quero a moleirinha a dançar

Com o Sandokan:

Cosa fai in questa foresta?_ chiese Sandokan,

E a moleirinha responde

: Danço in questa mattina

não há pedagogia analítica

que nos salve de optar

dança a moleirinha e o Sandokan

músicas carnais sem sintaxe

dançam até à exaustão

encaixam Deus na Samaritana

Cristo em Buda

E Alá, num canto, treina a dança do ventre

_ Tirem-nos da pobreza da igualdade!

Gilgamesh nasceu na Baixa da banheira

E os porcos que morrem

Aos milhões nos matadouros

Ainda ontem foram soldados em Aleppo.

Os sapos encantados

Tiram sapos da cartola

E cantam um qualquer hino nacional

Convencidos de que há uma só Pátria

_ Palermas de todo o mundo, nos

Quais me incluo,

Uni-vos contra o aparelho da penalidade

Correctiva

Hoje palermas, amanhã presos

Hoje presos, amanhã mortos,

Aos mortos a poderosa convergência

Do fim

Divirjo, divirjo, divirjo, divirjo

 

Os parolos dos peixes

Substituíram na frase o juramento

De Hipócrates, substituíram juramento por

Julgamento

E lançaram-se a julgar

Toda a canalhada que anda a navegar

As fronteiras são delinquentes:

Tu ficas aqui, aqui nascestes

Tu vais para ali, não te queremos

Desanda, estás a mais

Põe-te a milhas, não és daqui!

Não fales, não te compreendo

Apanha porrada, sou eu que a dou

Tolero-te, porque sou melhor do que tu.

Dialéctica rude a das fronteiras

: Três mil, ana, três e quatrocentos, Mouchcine, 6 biliões,

Kunduz, 1298 , Nicolau,9876, Fikki,

200, , Cabul,4567, Maria, 6600, Lurdes,

8900, kirkut, 332.000, Tikrit, 7800, Djibouti,7600,

Benim, 9900, Burundi, 2457, Ùbia

Números a seguir a nomes

Tabela de logaritmos

Numa lista de não sujeitos

Mudos e mais surdos

Céu colado à terra

Cadáveres de água

Ensopados de não memória.

Canta-os um baladeiro triste

Numa canção de raiva e auto-punição.

Nos cabarés onde a moleirinha passa

Um sabbat de condenados à porta!

_ E esta a dar-lhe com a moleirinha,

Porque fala esta de moleirinhas,

Pensa que está no século 19?

Já não há moinhos, oh escritora arcana,

Vai juntar sílabas para outra freguesia!

_ Já vou, deixem-me falar mais um pouco.

  

 

_ E agora, insisto,

Vamos rezar!

E agora?

Agora o quê?

Não há agora

 

E agora vamos rezar:

Plâncton nosso que estais no mar,

Santificado seja a vossa matéria

(Cala-te, oh estúpida!)

Venha a nós o vosso corpo

Seja feita a nossa vontade

(Herege dá de frosques!)

Assim no mar como no rio.

O plâncton nosso de cada dia

Nos dai hoje.

(Porque não te calas, não tarda

apanha no focinho!)

Comei-vos a vós mesmos

Assim como os outros nos comeram.

Não nos deixai cair em redenção

Mas livrai-nos da Rede, ámen!

 

Ah, calou-se, se não ia-lhe às trombas!

 _ E depois de rezarmos, pergunto:

 

Por acaso sabeis

Se além do paraíso

E aquém

Do jardim das delícias

As rosas dão figos

E os figos rosas?

 

Haverá no máximo

Duas respostas iguais.

 

Maravilhosa dúvida

Ao pôr do sol

Sei que os figos

Não são apenas doces

As rosas não são apenas belas.

Na boca do lobo

Ouve-se o eco da cascata

E se alguém à noite

Me quiser ordenar

Os olhos e o coração

Vade retro

Aqui há REBELIÃO!