ADELTO GONÇALVES
Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
I
Depois de lançar, ao final de 2017, Tibete: de quando você não quiser mais ser gente (Rio de Janeiro, Editora Jaguatirica), o mais recente exemplo de um bildungsroman (romance de formação) na Literatura Brasileira, Silas Corrêa Leite (1952) retorna à cena literária com Ele está no meio de nós (Curitiba, Kotter Editorial, 2018), que pode ser definido como um romance místico, religioso ou ecumênico. Tendo sido iniciada em 1998, a obra foi concluída em 2015 e é a primeira de uma anunciada trilogia. É de se destacar que, nos últimos tempos, o romancista lançou também Goto, a lenda do reino encantado do barqueiro noturno do Rio Itararé (Florianópolis: Clube de Autores Editora, 2013), romance pós-moderno, considerado a melhor obra do escritor, e Gute-Gute, barriga experimental de repertório (Rio de Janeiro: Editora Autografia, 2015).
A exemplo daqueles três romances que foram recebidos com boas críticas, Ele está no meio de nós não foge à regra, preservando o estilo anárquico e demolidor do seu autor. Desta vez, porém, Silas Corrêa Leite entra num campo místico, às vezes, e evangélico, outras vezes, narrando a história de um cidadão da mítica cidade de Itararé, localizada na divisa entre os Estados de São Paulo e Paraná, que ficou para a história como local de um episódio pitoresco da chamada Revolução de 1930, quando Getúlio Vargas (1882-1954) partiu de trem de Porto Alegre rumo ao Rio de Janeiro, então a capital federal, para empolgar o poder político, num golpe de estado típico em que a nascente elite industrial derrotou a decadente elite cafeicultora representada pelo presidente Washington Luís (1869-1957) e alguns velhos oligarcas de São Paulo e Minas Gerais. Não por acaso, Itararé é também a cidade natal do autor.
II
O romance narra as vicissitudes vividas por um cidadão pobre, renegado pelo pai empresário rico da cidade de origem, que, depois de décadas de muito trabalho e estudos na cidade de São Paulo, conseguiu subir na vida, tornando-se um new rich da chamada alta sociedade paulistana. Apesar disso, Paulo de Tarso Trigueiro, o filho renegado, conseguiu seguir os passos tortuosos do pai e enriquecer, em meio a negócios nem sempre lícitos. Mas, um dia, o então chamado doutor Paulo de Tarso, ao sair de um luxuoso jantar numa zona nobre da capital paulista, teve uma visão que o fez descobrir que de pouco vale ajuntar tesouros na Terra.
Ao contemplar do alto de um prédio os periféricos cantões miseráveis da cidade, o empresário recuperou a sensibilidade sublimada com muito dinheiro acumulado de forma não necessariamente legal. E viu a situação de degradação a que muitos foram relegados para que corruptos pudessem usufruir a riqueza, através de negócios escusos, geralmente envolvendo recursos públicos, desviados para bancos estrangeiros.
É o que se pode constatar neste trecho de uma carta deixada pelo rico empresário a um filho: “Nasci pobre filho bastardo de pai rico que ignorou minha própria existência, lutei muito, trabalhei feito um espeloteado, passei fome, vi minha mãe morrer com o pouco que eu lhe pudera dar, no entanto, vim para Sampa e aqui carreguei meu fardo, combati o meu combate, fiquei rico, casei bem, tive filhos maravilhosos, tinha status, dinheiro, poder, força, a influência política, no entanto, NUNCA FUI FELIZ” (p. 116).
Ferido na alma, a personagem de Silas Corrêa Leite decide tomar uma decisão radical na vida, disposto a largar tudo e doar o muito que tem aos fracos e oprimidos, atendendo a uma máxima que Cristo preconizou nos Evangelhos, indo morar nas ruas com os fracos e oprimidos, para assim tentar encontrar Deus e ser salvo. Refugou a esposa, preparou os papéis legais para a nova vida, deixando a empresa para os filhos e a herança para quem de direito, doando parte de sua fortuna a casas de caridade. Como se tivesse sido tomado por um arrebatamento no caminho de Damasco, o doutor Paulo viraria o irmão Saulo ou o beato Saulo, indo morar nas ruas com os humilhados e ofendidos, como forma de encontrar Deus.
III
Na periferia e nos escombros da grande cidade de São Paulo, conhece também o mundo do crime, o mundo-cão. “Também, ali num ermo subterrâneo fétido, úmido e cheio de ratos de um canto na Avenida Paulista com a Estação Paraíso do Metrô, havia um Banco de Sangue que supria – à custa de doadores forçados (principalmente as instruídas vítimas do rol dos miseráveis) – os bancos paulistas, brasileiros e mesmo latino-americanos, pertencentes à chamada iniciativa privada. (…) Quando alguém morria por seguidas doações – eles estimulavam quimicamente – eram simplesmente desossados e os ossos vendidos como se de animais para fábricas de goma arábica, ou exportados” (p. 128).
Adaptado à nova (e sofrida) vida, escreveria mais tarde a um dos filhos: “Não tenho que ouvir discursos pomposos, chatos, cheios de falsidade. Não tenho que apertar a mão de um ladrão e chamá-lo de “colega” quando são espertos e não experts, mesmo sabendo do superfaturamento de obras, de obras públicas inúteis, de quadrilhas de doutores, bacharéis, liberais e “autoridades” constituídas” (p. 118).
Por depoimento do autor ao final do livro, o leitor vai descobrir também que a história deste Paulo de Tarso moderno seria verídica, tendo o autor muito ouvido falar dele em sua Itararé natal e, depois, procurado parentes da personagem, que confirmariam muito do que ouvira, embora muitos tivessem preferido não se identificar, bem como mendigos recuperados que teriam assegurado a veracidade de muitos fatos.
Além disso, teria localizado em Itararé os cadernos de rascunhos, que reproduz no livro. “Não inventei nada, nem enfoque ideológico ou religioso. Apenas formatei um relato do que de inteiro e crível entendi”, garante o autor. Cabe agora ao leitor conhecer e avaliar este livro que constitui um testemunho de esperança e fé na espécie humana, apesar de tudo.
IV
Silas Corrêa Leite é poeta, romancista, letrista, professor, desenhista, jornalista, resenhista, ensaísta, conselheiro diplomado em Direitos Humanos e membro da União Brasileira de Escritores (UBE), além de blogueiro e ciberpoeta. É formado em Direito e Geografia, além de ter cursado extensões e pós-graduações nas áreas de Educação, Filosofia, Inteligência Emocional, Jornalismo Comunitário e Literatura na Comunicação. Tem mais de 20 livros publicados, entre os quais Porta-Lapsos (poemas) e Campo de Trigo Com Corvos (contos). É autor ainda do primeiro livro interativo da Internet, o e-book O rinoceronte de Clarice. Foi finalista do Prêmio Telecom, Portugal.
Ele está no meio de nós, de Silas Corrêa Leite.
Curitiba: Kotter Editorial (Sendas Edições), 208 páginas, 2018.
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