Educação e Poesia

DULCE RODRIGUES


INTRODUÇÃO

Quando as Edições Helvetia me convidaram para fazer uma pequena palestra sobre Educação e Poesia, aceitei com prazer o desafio. Embora não vá fazer a Defesa da Poesia ao mesmo nível que Shelley, ou John Miller, ou os autores da Antiguidade clássica, defendo que tem faltado no ensino uma certa poesia – e sempre faltou, desde que me lembro e que frequentei os bancos da escola.

Antes de entrar propriamente no assunto, todavia, gostaria de tentar definir o que, na minha perspectiva, são a Educação e a Poesia.

Educação é o processo de aquisição, por parte de cada indivíduo, de conhecimentos no campo intelectual, moral, físico e de inserção na sociedade. Podemos dizer, também, que a Educação é o companheiro que anda de mão dada com a Cultura.

Quanto à Poesia, a definição é bem mais complexa. O que é Poesia?

A resposta mais comum é igualar a poesia a uma composição métrica em verso que age sobre as emoções e o sentir, e que é conhecida como poema. Mas, por um lado, os versos nem precisam de obedecer obrigatoriamente a regras métricas para serem considerados poemas. Por outro lado, a representação de pensamentos ou imagens capazes de suscitarem emoções ou sentimentos não é atributo exclusivo do poema.

Os poemas são somente uma das inúmeras formas de poesia. Por outras palavras, a poesia assume diversas formas: não só a poesia como poema; mas também a poesia como forma imaginativa de ensinar, de relatar factos reais (como no caso da História e da Ciência), ou do conto ficcional.

Quanta poesia pode encerrar uma novela, um conto? E em quase toda a boa novela, ou conto, há uma grande dose de poesia. Podemos encontrar poesia em qualquer forma de prosa.

Pergunto-me também muitas vezes: haverá maior poesia do que a própria natureza?

Então, a pergunta persiste…

 

O QUE É POESIA?

A palavra “poesia” pressupõe algo de muito particular na sua natureza:

Algo que pode existir no poema – quer este obedeça a regras métricas ou não; como também pode existir na prosa.

Algo que até dispensa o uso de palavras, pois pode revelar-se através de sons musicais, como no caso da música. Algo que se manifesta através da contemplação estética, como no caso da linguagem da escultura, da pintura, da arquitectura.

A poesia tem como finalidade agir sobre as sensibilidades da alma, e o seu oposto não é a prosa, mas sim os factos, as acções. Enquanto os factos se concentram em se tornarem credíveis, convincentes ou persuasivos, ou mesmo compreensíveis, a poesia dirige-se aos sentimentos e às emoções, oferecendo à sensibilidade assuntos de contemplação.

Todas estas considerações sobre a natureza da poesia nos permitem então afirmar que, num sentido geral e alargado, a poesia pode ser definida como “a expressão da imaginação”.

A poesia existe desde a aurora da humanidade, quando o homem primitivo aprendeu a dançar e a cantar, e a imitar a natureza, imprimindo a essas acções – e a todas as outras do seu quotidiano – um certo ritmo e ordem, proporcionando prazer e abrindo o espírito ao deleite.

A poesia está omnipresente na nossa vida, concede paixão aos nossos actos; harmonia ao esplendor da imaginação; melodia, cadência e ritmo à linguagem.

Como mencionei no início, não vou fazer a defesa da poesia segundo os autores da Antiguidade, mas defender a poesia como componente do ensino, da Educação:

Poesia no sentido literal da palavra – o que nos remete para o poema.

Poesia no sentido figurado – o que pressupõe um leque de assuntos muito mais abrangente.

 

A POESIA NA EDUCAÇÃO

Falemos primeiramente sobre a poesia no sentido literal – ou seja como poema – na Educação. Para as crianças, a poesia-poema tem de ter letra simples de memorizar, fácil de compreender, e com temas ligados à própria realidade infantil. Haverá melhor escolha do que a popular cantiga de roda?

Apesar de existir uma riquíssima colecção de cantigas de roda, este património de tradição oral tem sido relegado para segundo plano – por vezes, mesmo esquecido – na educação das crianças.

Contudo, este tipo de canção popular – melodiosa e rítmica – além de ter uma letra simples de memorizar, está recheada de rimas, repetições e trocadilhos, o que logo à partida faz da canção uma brincadeira, a qual é normalmente ainda enriquecida com certas coreografias.

Usando episódios fictícios, os temas da cantiga de roda falam muitas vezes da vida dos animais e comparam a realidade destes à realidade humana.

Outras vezes, os temas incidem sobre objectos do quotidiano das crianças, da família – como é o caso do tema do amor, que as crianças idealizam semelhante ao amor dos próprios pais.

Há ainda as cantigas que retratam simplesmente uma estória divertida e engraçada. Mas todas elas contribuem para que a atenção da criança fique presa à história contada, estimulando assim a sua imaginação e memória. Pois inconscientemente, sem se aperceber disso, a criança vai assimilando a letra – e associando a letra à música.

Esta forma de poesia – além de despertar na criança a percepção de emoções e sentimentos, e uma sensibilidade musical – dá-lhe a conhecer usos e costumes, paisagens, flora, fauna, crenças, e muitas outras coisas do mundo que a rodeia.

Dentro de um registo semelhante de poesia que consegue captar o interesse da criança através da sua narrativa, e cujos temas abrangem universos semelhantes, encontramos a fábula.

A fábula é acima de tudo uma estória contada de modo a captar a atenção do leitor/ouvinte – as crianças, no caso presente – e despertar nelas emoções que lhe permitam apreender a beleza das coisas, como um espelho que torna belo aquilo que está desfigurado.

As personagens da fábula são sempre animais com defeitos e virtudes semelhantes às do ser humano. O carácter educativo da fábula é ressaltado pela mensagem moral que passa através de toda a narrativa, mas que se torna evidente no final da fábula.

As fábulas são curtas e têm ainda a particularidade de tanto poderem ser em prosa como em verso. Mas em qualquer dos casos a sua narração está impregnada de poesia, possui força criadora e imaginativa.

Sendo a fábula uma narrativa em verso, mas que também pode ser em prosa, que melhor exemplo para servir de ponte de ligação e nos levar agora a reflectir sobre a poesia, no sentido figurado, como instrumento de Educação? Desde a infância da humanidade que a poesia tem estado presente na evolução intelectual do homem – e  foi a primeira fonte de ensino.

Ninguém pode negar a antiguidade e a universalidade da poesia. Foram os poetas que trouxeram luz à ignorância, e os filósofos e os historiadores da Grécia antiga eram considerados poetas – não forçosamente por escreverem em verso, apesar de as regras métricas serem as que melhor permitem exprimir sentimentos – mas pela maneira criativa de personificarem a própria visão do real e descreverem as acções num estilo vivo e persuasivo.

Todo o conto deve ter como ingredientes uma bela estória, que seja criativa e desperte a imaginação. Numa palavra, deve ser poeticamente narrado. O que nos mostra que qualquer narrativa, sobre qualquer assunto – quer científico ou histórico – pode estar impregnado de poesia.

Pois a poesia não está no objecto em si, nem na sua verdade científica ou histórica, mas sim na expressão imaginativa da descrição. Por outras palavras, uma descrição ou narração poética não é pintada nas suas cores reais, mas sim nas cores transmitidas à imaginação pelos sentimentos.

Se quisermos descrever um leão, poderemos fazê-lo de duas formas : como um biólogo, puramente sob o ponto de vista científico. Ou poeticamente, embora em prosa. Vou dar-vos um exemplo concreto com excertos de dois textos sobre as metamorfoses da borboleta.

O primeiro, é um texto que eu poderia ter escrito para o meu sítio infanto-juvenil barry4kids.net de modo semelhante ao que fiz para temas como o reino animal, os mamíferos, aves, peixes, invertebrados e muito, muito mais. Como o sítio está em quatro línguas, isto quer dizer que tenho de traduzir tudo o que escrevo nessas línguas, pelo que normalmente esses textos são curtos e têm unicamente as informações necessárias para a aprendizagem do tema, embora tente sempre dar-lhes uma pincelada mais lúdica.

O segundo excerto é de um livro infantil que escrevi – mas ainda não se encontra publicado – Achei que as metamorfoses da borboleta eram um tema bastante interessante e que poderia ser narrado com uma certa poesia. Aliás, fiz o mesmo para falar nas metamorfoses da rã.

 

Texto não-poético sobre a metamorfose das borboletas

Uma borboleta-macho fecunda os ovos de uma borboleta-fêmea e esta procura as folhas de uma planta para aí depositar os ovos. Muitas borboletas não têm preferência pela planta hospedeira, mas as borboletas-monarca só põem os ovos nas folhas da asclépia. Os ovos são brancos e de forma oval, como uma bola de futebol americano, e têm finas linhas que vão de uma ponta à outra do ovo.

(…).

Então, através de nervuras nas asas, a borboleta suga fluídos estomacais, e as asas vão-se estendendo, até atingirem o tamanho máximo e ficarem com as cores da sua espécie. Uma vez as asas secas e bem firmes, a borboleta pode levantar voo e ir viver a vida como as demais borboletas diurnas. Em breve as borboletas-fêmea encontrarão borboletas-macho, e o ciclo de vida recomeça, dando nascença a novas lagartas… novas crisálidas… novas borboletas!

Vejamos agora o exemplo do excerto do livro, escrito de um modo que penso seja mais criativo e apelativo.

 

Texto poético sobre a metamorfose das borboletas

É Primavera no jardim e há flores por todo o lado. Umas são amarelas, outras vermelhas, brancas, azuis… Que maravilha!

Uma multidão de borboletas, nas mais variadas cores e tamanhos, saltitam de flor em flor. Num recanto do jardim, um par de lindas borboletas começam um bailado gracioso… e amoroso. São um macho e uma fêmea e estão apaixonados. Querem constituir família!

Tal como os humanos, também os animais se enamoram e acasalam. A nossa amiga borboleta fêmea procura agora as folhas de uma planta hospedeira onde pôr os ovos que o seu companheiro fecundou.

Mas não pode ser qualquer folha, ela não é daquelas borboletas que põem os ovos nas folhas de qualquer planta. Para ela, só servem as folhas de uma determinada flor.

Ali está ela, a asclépia, a sua planta hospedeira preferida! O lugar ideal para os seus pequenitos nascerem.

Põe os ovos nessa planta tão especial e lá vai de novo pelos ares, colhendo néctar de flor em flor, ao encontro do seu amor.

Na folha da asclépia, ficaram os ovos. São brancos e de forma oval, como uma bola de futebol americano, e têm finas linhas que vão de uma ponta à outra do ovo. Ovos redondos são muito vulgares, não são para borboletas-monarca!

(…)

Quando a borboleta adulta sai do casulo, as suas asas são pequenas e estão húmidas. A nossa amiga borboleta ainda não sabe voar e pode ser uma presa vulnerável a predadores.

Mas a nossa simpática borboleta não cruza os braços, ou melhor… as asas, à espera de que aconteçam milagres. Através de nervuras nas asas, suga fluídos estomacais… e as asas vão-se estendendo, estendendo… até atingirem o tamanho máximo e ficarem com as maravilhosas cores da sua espécie.

As asas estão agora secas e bem firmes. A nossa amiga borboleta pode levantar voo e ir viver a vida como as demais borboletas diurnas.

“Olhem! Estou aqui! Sou uma borboleta-monarca,” grita ela.

Perto dali, uma lagarta de borboleta está atarefada a comer folhas de uma planta. Mais além, voa uma outra borboleta monarca. É um macho. Ele olha para a nossa amiga borboleta.

“Que graciosa! Quanta leveza!” pensa ele.  E o nosso romeu lança-se no encalço da sua julieta.

Olham-se… É amor à primeira vista. Vão voando de flor em flor, colhendo néctar. E o ciclo de vida da borboleta-monarca recomeça, dando nascença a novas lagartas… novas crisálidas… novas borboletas!

É o maravilhoso mistério da vida.

Depois de toda esta exposição, possivelmente não consegui dar uma definição do que é Poesia, mas espero ter conseguido mostrar quão importante e, mesmo necessária, é a poesia no ensino. E de como a poesia de que está impregnado um texto pode ter um papel incentivador na aprendizagem de qualquer matéria, incluindo a matemática.

Afinal, qual a idade em que a paixão por uma estória se faz mais sentir ?

– Na nossa infância !

É, pois, nesta fase que devemos começar a desenvolver nas crianças a faculdade inventiva, criadora e criativa. Crianças inteligentes, imaginativas e curiosas serão adultos saudáveis de espírito, autoconfiantes e emocionalmente estáveis.

Agora, uma pergunta surge ainda : Terão os professores capacidade criadora e criativa para continuarem a despertar nas crianças a inteligência imaginativa que tem acompanhado o ser humano desde os tempos primitivos ?

Saberão os professores, os pais e outros educadores desenvolver a faculdade imaginativa da criança, ou, pelo contrário, estão a confundir imaginação com fantasia?

Imaginação não é o mesmo que fantasia. A imaginação é faculdade inventiva, criadora e criativa, com fundamento na realidade da vida.

A fantasia é um desvio, uma deformação da realidade da vida. A fantasia é essencial ao desenvolvimento da criança nos primeiros anos de vida. Todavia, se a fantasia persistir para além de uma certa idade, digamos a adolescência, contribuirá para que a criança seja mais tarde um adulto fechado, inseguro e emocionalmente instável, pois a realidade entra em conflito com o mundo que ele construíra na sua fantasia. Este é o grande perigo de muitos jogos de computador e também de certos filmes contemporâneos.

Temos de SABER DESPERTAR a imaginação, SEM alimentar a fantasia.


Dulce Rodrigues (Portugal). Avó de duas lindas meninas, Dulce Rodrigues escreveu oito livros infanto-juvenis (alguns publicados noutras línguas, como chinês), dois livros de viagem e uma novela. Participou em diversas antologias internacionais e escreve em vários jornais e revistas. Autora premiada no 2013 Hollywood Book Festival nos Estados Unidos e em concursos literários na Europa, incluindo o 2013 London Book Festival, Dulce Rodrigues fala seis línguas vivas e traduz muitos dos seus próprios livros. Algumas das suas peças de teatro juvenil foram representadas no estrangeiro. Natural de Lisboa, cidade que a viu crescer e onde fez um curso universitário em Letras e Literaturas, viu-se atribuir mais tarde uma bolsa de estudos pelo Goethe-Institut na Alemanha e uma outra para um curso científico com a Open University no Reino Unido, o que a levou a viver em vários países da Europa. Depois de uma carreira profissional como tradutora de inglês e alemão junto das Forças Militares Norte-Americanas na Alemanha, e como funcionária internacional da OTAN, organização de que se encontra aposentada, divide agora o seu tempo entre as viagens e os livros – como leitora e como autora, sobretudo para crianças, para as quais criou também o projecto www.barry4kids.net (em quatro línguas). É apaixonada por História, em especial a riquíssima História de Portugal, de que tem feito tema de conferências e de artigos publicados em jornais e revistas. Gosta também de jardinagem, fotografia, arte, música e animais. É membro de diversas associações culturais e literárias no estrangeiro e em Portugal (das quais a APE) e colunista e representante internacional do Jornal Sem Fronteiras (Brasil) e colaboradora do jornal BomDia.eu (Luxemburgo). Visite-a em about.me ou em www.dulcerodrigues.info.

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