Não conheço São Tomé. Um dia, falando de viagens com um naturalista que estudou insectos das ilhas do Golfo da Guiné, dizia eu que tinha ido recentemente a Cabo Verde, para me aproximar da Guiné-Bissau, onde vivi e fiz estudos primários e liceais. À Guiné, apesar do desejo de voltar, não tenho coragem de ir, receio que nada do que lá existe hoje corresponda às minhas memórias. E que gostava de ir a São Tomé e Príncipe. Ele saltou como se tivesse sido mordido pela mamba de São Tomé, salvo seja, e disparou: "Não! Não vá a São Tomé, não há lá nada para ver!". É curioso como as pessoas, falando do mesmo assunto, têm referências diagonais, que por vezes nem se intersectam, porque os paradigmas são diferentes. Se eu fosse a São Tomé, não reconheceria a Tyrophorella thomensis, nem a Ardea gularis, todos os morcegos me pareceriam os mesmos morcegos, se visse uma cobra verde chamava-lhe Philothamnus thomensis, sem qualquer gralha, e a probabilidade de acertar seria de 99%, porque há 1% de hipóteses de estar lá a Dendraspis viridis, que, se vier a ser descoberta, naturalmente receberá o nome de Dendraspis thomensis... E se visse uma cobra negra, grande, rápida e refulgente, recuaria, respeitando a bichinha, por saber que era a Naja. Era capaz de chamar Anopheles a algum mosquito que me picasse à noite, mesmo sem o ver, e também acertava em cheio na identificação. Mas os escaravelhos seriam só escaravelhos, as borboletas, só borboletas, e pouco mais. Peixes, nem sequer no prato, apesar de ter a noção de que há imensos problemas com os Gobius e os "Gobios", parece que são muito diferentes... Este conhecimento é no entanto irrelevante no meu trabalho em História das ciências: eu não lido com os animais, sim com a literatura sobre eles. De resto, a ciência classificatória, a taxonomia, também não lida com os animais, lida com as espécies, e esta é uma das razões do drama que está a correr invisivelmente no TriploV. Eu posso ir a São Tomé e a qualquer parte do mundo, sem causar estragos ao paradigma do naturalismo. Onde eu causo estragos, por descobrir o que está encoberto há séculos, e os naturalistas não querem que se saiba (outros querem, por isso o segredo é público, está publicado), é na leitura que faço dos textos. Um deles é o que ponho agora em linha, "São Tomé em 1903", fragmentos de um longo artigo de Júlio Henriques (clique na imagem em baixo). Espero, tenho fé em que ele seja instrutivo, mas não o posso garantir. Acredito que sim, que os enunciados correspondam aos factos, apesar de o texto estar ferozmente gralhado em todos os níveis, o que aliás é invulgar: as gralhas só costumam atingir a nomenclatura biológica, geográfica e nomes de autor, para lá de outras paródias. Neste texto atingem a gramática em geral, quer portuguesa quer de outras línguas (preste atenção às referências bibliográficas) e o trabalho gráfico - paginação incerta, artigo escondido entre outros, no índice, quando abre o volume, imagens com numeração salteada, etc., e uma errata que só serve para chamar a atenção para as gralhas. Penso que o texto, referindo-se a uma viagem a São Tomé em 1903, mas redigido aos poucos até à data de publicação, 1917, está auto-censurado politicamente. E creio ainda que o assunto mais delicado é o da escravatura, abolida oficialmente, mas que persistia com outras designações. Acredito que Júlio Henriques não pudesse falar abertamente, faça o jogo das conveniências, mas posso estar enganada. Uma faixa dos leitores aceitaria a versão literal, a prudente, outra parte, a dos confrades, leria no gralhado uma versão totalmente diversa dos factos. Um dos fragmentos que seleccionei, sobre a vida nas roças, mostra como viviam os serviçais, a bem dizer em cativeiro. A propósito deste texto, demasiado longo e recheado de problemas para o analisar em pormenor (umas 200 páginas no total), queria apenas dizer o seguinte: um dia o paradigma do natural vai cair, ele é insustentável. Não é cientificamente sustentável a teoria de que tudo o que existe é natural, pois não se contempla a hipótese de acção humana sobre as espécies, as migrações do homem, que com ele leva voluntária ou involuntariamente uma quantidade de animais e plantas de regiões para outras muito diversas e afastadas. Este paradigma é imperialista, colonial, faz tábua rasa de toda a História das colónias anterior à penetração nelas por parte do europeu. Paradigma romântico também, que privilegia o selvagem, incluindo o homem negro ou índio nesse ideal de meio virgem. Mesmo em tempos recentes, o indígena é visto como objecto de estudo, à semelhança de plantas e animais. Não é considerado igual ao europeu, por isso a sua acção sobre a Natureza não abala a convenção de que "tudo o que existe é natural". Ao agir de acordo com esta convenção, o naturalista trabalha sem rede, está à mercê de quantos queiram plantar, semear ou deixar novas espécies onde antes não existiam. Queria então dizer o seguinte: nunca será possível saber o que é fruto de selecção natural. Acerca do que foi seleccionado pelos índios, chineses, fulas ou mandingas, em nada posso ajudar. Porém, quando o paradigma do natural cair, se a ciência então quiser saber quais foram as espécies introduzidas e hibridadas pelos naturalistas, a tarefa é fácil: elas estão todas marcadas. Além de marcadas, o trabalho está assinado. Como neste texto de Júlio Henriques sobre São Tomé, em que aparece um capítulo sobre uma pedra. Chevalier também descobriu inscrições antiquíssimas em pedras, em Cabo Verde, numa língua que ninguém conhecia, talvez proto-basco... Na história do Dodó (veja "Do Dodó à Fénix", no TriploV) também aparece estudada mineralogicamente, e representada em três posições diferentes, uma pedra engolida por um dos animais, pedra que todos engoliam e ia crescendo à medida que os dodós cresciam. Ora, como se chamam os artistas que trabalham a pedra? - maçons, acho eu... |