Para além do facto de não termos todos a mesma língua e educação, para além do facto de votarmos em partidos diferentes, e de não sermos fiéis dos mesmos deuses, para além de toda a desejável diferença que nos assegura alguma singularidade e permite a amizade, a partilha de bens espirituais, científicos ou artísticos, há outras diferenças mais radicais entre nós, habitantes humanos da Terra. Se olhar aí para baixo, para essa imagem do cabeçalho de um site (http://www.espada.eti.br/n1478.asp), ela revela o que pretendo dizer com uma diferença mais profunda do que a social, a económica, cultural, partidária ou nacional, apesar de irromper do seio de uma religião que é a nossa, a do Povo do Livro (judaísmo, cristianismo, islamismo), e devia ser o nosso elo afectivo mais forte. Mas infelizmente não é, e a História demonstra no seu longo percurso que o Livro tem sido objecto mais de discórdias do que de união dos três povos que o têm como alicerce civilizacional, entendendo por tal a invenção da escrita.
Quer devido às suas características de obra de arte, quer porque a obra de arte elege como tema fundamental a Palavra, seja ela a tábua com os Dez Mandamentos, o Verbo de S. João, seja a sura que Gabriel obrigou Muhammad a ler num pano com caracteres desenhados, sabendo que o Profeta era analfabeto, mas perante a ordem de ler, Muhammad leu, o Livro que nos devia unir e não une é a mais espantosa homenagem que conheço à comunicação escrita, e só se concebe como expressão de deslumbramento perante uma Revelação (descoberta ou invenção, se prefere) que arrancou o homem da terra para o elevar a um degrau de espiritualidade a partir do qual pôde falar com Deus. Não há nada mais elevado na Terra do que esta possibilidade humana de entrar em comunicação com o que puxa por ela para cima, e não para baixo.
Não são os terroristas o nosso inimigo. "Terrorismo", para já, é termo de conveniência que não descreve nem interpreta correctamente a situação. Esses a que chamamos terroristas nem sequer infundem terror. O terror tem dimensão sacral, não confundamos com ele o medo de morrer numa guerra, num atentado, numa calamidade natural ou até num atropelamento. Esses homens combatem por direitos que lhes estão a ser negados, e se lançam bombas em plena cidade é para que ouçamos a sua voz, já que cerramos as orelhas às suas palavras e não nos dignamos ouvi-los. Estamos de tal modo paralisados por ideologias e paradigmas que o cérebro não consegue funcionar fora desses palavrosos penicos, e para o agitar a pensamentos diversos do comezinho interesse, esses, a que chamamos terroristas, falam, não com a voz, sim com o estrépito das bombas. Não parece assim tão difícil acabar com a guerra urbana, se os que tudo julgam ter e poder cederem a sua parte indevida a quem reclama estar a ser excluído do direito de comer à mesma gamela.
Terror é outra coisa. Terror é Outra Coisa, é a Coisa Outra, o desconhecido, o que imaginamos seja capaz de agir em nós mudando-nos em algo irreconhecível, incontrolável. Terror seria acordar para nos vermos transformados num insecto, literalmente, e não na "Metamorfose" de Kafka nem num filme de terror. A morte física não inspira terror, nem a doença, nem nada daquilo a que por convenção chamamos "natural", e que na maior parte dos casos é cultural, fruto do engenho humano. Todos já sentimos medo e até já entrámos em pânico, mas o terror inscreve-se numa dimensão do sobrenatural que pode até nem ser maléfico. É uma reacção do ser à aparição, àquilo que não faz parte do nosso mundo nem da nossa humanidade, tanto pode a aparição ser o Anjo Gabriel como Satanás.
Terror, se por terror se entender um ficar gelado de espanto por algo que definitivamente nos é tão estranho como os selenitas, um estranho que escapa a ideologias, a paradigmas e mesmo a religiões, apesar de nascer aí, como um cancro, no seio do Livro, um estranho com o qual se não pode falar porque não se entende, esse é o que pretende o satanismo. A esses, sim, que invocam a Besta e por insígnia de Deus usam o cifrão, esses que falam através de números e os ocultam nos cartões de crédito, ou os tatuam no corpo como sinal, o sinal da Besta do Apocalipse, ou Anticristo, esses, sim, são o inimigo, porque esses vivem noutro lado da nossa consciência, inverteram os nossos valores, os valores do Bem, da Justiça, da Piedade, de tudo o que nos permite falar, ainda que só por gestos, com o nosso semelhante. Esses são o Dissemelhante absoluto e em nada se confundem com Bin Laden e seus elementos de tropa, porque estes, odiemo-los ou não, são nossos semelhantes.